«Marta de manhã»: está tudo mortinho por saber para onde vamos quando morremos

«Marta de manhã» é uma nova rubrica semanal, matinal, cujo nome fui roubar ao programa de rádio mais famoso em todo o mundo — ou, pelo menos, em Cicely, no Alasca. Chamava-se «Chris in the morning» e era um dos muitos bons momentos da série norte-americana No Fim do Mundo, produzida nos anos 90. Quem conhece sabe que Chris Stevens, interpretado por John Corbett, dava os bons dias à população de Cicely com longas conversas intercaladas com leitura e música. Quem não conhece, agora também já sabe. Às vezes volto a Cicely (via DVD) e nunca me desiludo.
A partir de hoje, tentarei vir aqui dar-vos os bons dias de vez em quando; sempre à sexta-feira, embora não todas as sextas-feiras, com longas conversas intercaladas com leitura e música. O meu tema são as ligações entre determinados livros e determinadas músicas: as que existem de facto e as que existem apenas na minha cabeça.  

Há algum tempo que ando a pensar no formato e a coleccionar ideias. Estou longe ainda de ter chegado modelo ideal — até porque não tenho as ferramentas para tal —, mas o lançamento, hoje, de um álbum de Rain Phoenix abriu tantas ligações na minha cabeça que decidi que está na altura de começar.
Ora bem. Então, o meu feed do facebook mostrou-me um vídeo de um dueto de Michael Stipe, o ex-vocalista dos REM (de barba feita, por sinal), com Rain Phoenix. De Rain eu não sabia nada, mas Stipe desperta sempre a minha atenção, pelo que fui ler — e ouvir.

A primeira coisa que descobri foi que Joaquin Phoenix, actor que muito prezo, é irmão de River Phoenix. E de Rain Phoenix (que, na verdade, se chama Rainbow Joan of Arc Phoenix). Ainda há mais irmãos, todos com nomes próprios muito hippies (sim, nem Joaquin se safa, porque começou por ser Leaf). Não consigo perceber como é que isto me passou ao lado. Vocês sabiam, tenho a certeza.
Rain Phoenix resolveu lançar um álbum que evocasse «o River Phoenix músico», agora que já passou um quarto de século sobre a sua morte (!), e para isso muniu-se de gente ligada àquele miúdo-maravilha que, aos 23 anos, não sobreviveu a um pouco de diversão a mais.



Já ouvi esta canção umas dezenas de vezes, sem exagero. Sou obsessiva com as minhas escutas. Doce e triste, conta com a segunda voz de Stipe para torná-la um pouco mais sofrida. Bastou-me ouvi-la uma vez, no entanto, para me lembrar de Lincoln no Bardo, de George Saunders, publicado em Portugal pela Relógio d'Água. Recebi-o como prenda de aniversário no ano passado (em Maio, caso queiram mesmo saber). Li-o pouco tempo depois e digo-vos que não foi fácil. Emocionalmente. Mas ainda bem que o fiz, por tudo o que senti, pensei, aprendi. Que beleza, que força — uma tempestade de Turner.

Trata-se do primeiro romance de Saunders, que até então somara prémios a escrever contos, e que com esta obra arrecadou o Booker Prize em 2017 — temos que nos desabituar de chamar-lhe Man Booker Prize, com a retirada do patrocínio do grupo Man. Será que teremos, em breve, um Amazon Booker Prize?


Diz o autor que o livro nasceu dos esboços de uma peça de teatro que não conseguiu escrever. Lê-se, de facto, como uma peça de teatro, e não é verdade que os seus esforços não tenham tido êxito, pois pode muito bem vir a ser encenado um dia. É encenado na imaginação de cada um dos seus leitores, seguramente.
 
A acção decorre no cemitério de Oak Hill, em Washington, durante uma noite. A noite após o funeral de Willie Lincoln, o filho do então presidente dos EUA, vencido, aos 11 anos, pela febre tifóide (ao que tudo indica). Decorre no cemitério, mas não: decorre no bardo, o «local» intermediário entre a morte e o renascimento, segundo o budismo tibetano.

A história é-nos contada através de uma colagem de falas das várias personagens e ainda de citações de imprensa e de outros documentos que ajudam à contextualização. Parte verdade, parte ficção. Ficção cheia de verdade. Escolhi um pequeno excerto da página 167, entre tantos outros possíveis, para vos ler alto:



Não é apenas o facto da morte do filho do presidente que vem agitar os habitantes desse «local», desse estado latente: é um assunto, claro que sim, mas o que vem verdadeiramente perturbá-los é a visita do pai ao túmulo do filho a meio da noite, para conversar com ele e abraçá-lo. Porque perturbar assim a ordem (sobre)natural das coisas tem consequências.

Pág. 80:
«O que eu queria dizer é que tínhamos sido relevantes. Tínhamos sido amados. Não solitários, não perdidos, não grotescos, mas sensatos, cada um ou cada uma à sua maneira. As nossas partidas foram causa de sofrimento. Aqueles que nos tinham amado sentaram-se nas suas camas, a cabeça entre as mãos; poisaram a cara em cima de tampos de mesa, soltando sons animais. Tínhamos sido amados, digo eu, e ao sermos lembrados, mesmo muitos anos depois, as pessoas sorriam, com breve alegria ao recordarem.
reverendo everly thomas

E no entanto.
roger bevins iii

E no entanto nunca ninguém veio aqui para abraçar algum de nós, com palavras assim tão ternas.
hans vollman

Nunca
roger bevins iii»

«Everybody's dying / to know / where we go / when we die», canta Rain Phoenix, com o seu irmão morto há 25 anos em mente. E assim responde à inquietação de todos. 

É para aí que vamos quando morremos, para a memória dos que nos amaram, dos que nos leram, dos que nos viram num filme ou num palco, daqueles com que nos cruzámos aleatoriamente, daqueles que se cruzaram com qualquer coisa que tenhamos criado. 
Com o pequeno álbum lançado hoje, Rain Phoenix e todos os que com ela colaboraram abraçam River Phoenix, conversam com ele, como Lincoln fez com o seu Willie na noite após o funeral da criança. Nós, os que escutamos as canções, também.
 
Que possamos sempre abraçar e conversar com os nossos mortos queridos, tenham passado 25 ou mais (ou menos) anos desde que se mudaram para as nossas memórias. Para sempre.

Bom dia a todos.
Marta

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