«Marta de manhã»: tantas coisas antigas e belas armazenadas no sótão do mundo


 «A minha mulher, a minha Mary, adormece como se fecha a porta de um armário. Quantas vezes a contemplei com inveja? Enrosca o lindo corpo como se se instalasse num casulo, suspira, os olhos fecham-se e os lábios tomam a forma daquele sorriso sábio e vago dos antigos deuses gregos. (...) Ela diz que não sonha. Mas, no entanto, deve sonhar. O que sucede é que os sonhos não a perturbam, ou então perturbam-na de tal maneira que os esquece antes de acordar. Gosta de dormir e o sono faz-lhe bem. Queria ser como ela. Luto contra o sono e desejo-o com ânsia.
Talvez, digo-o a mim próprio, isso seja devido ao facto de a minha Mary saber que viverá para sempre. Passará desta existência a outra com a mesma facilidade com que se passa do sono ao despertar. Todo o seu corpo o sabe com uma tal certeza que ela não pensa nisso, como não pensa em respirar. Assim tem tempo de dormir, de repousar, de cessar de existir por algum tempo.»

Assim começa o terceiro capítulo de O Inverno do Nosso Descontentamento, de John Steinbeck. A voz é de Ethan Allen Hawley, o protagonista desta que foi a última obra que Steinbeck deixou completa. Ethan é filho de aristocratas arruinados e trabalha numa mercearia. À partida, isso não representaria para ele grande problema. Preocupa-o mais a corrupção que sente fervilhar à sua volta, nos pequenos e nos grandes gestos daqueles com quem se cruza diariamente. Mas há toda uma pressão, a começar logo dentro de casa, para que ele ultrapasse os desaires financeiros que o seu pai infligiu à família e reconstrua o estatuto e o estilo e vida que sempre fora reconhecido aos Hawley. Como se um apelido fosse uma habilitação.
O que acontece é que a pressão acaba por ir abrindo fendas. E, a dada altura, já não há como aguentar de pé a armadura íntegra que lhe servia de segunda pele.

Li este livro há quatro anos — mas esta semana houve um episódio que me fez recordar a comparação tão feliz entre adormecer e fechar a porta de um armário (um pouco como aquela do poema de Álvaro de Campos, «rir como um copo entornado»).
A hora de dormir, ui, que terreno fértil para introspecções e receios! Há ali um momento, um lusco-fusco entre a vigília e o sono, em que baixamos as guardas e entra todo o género de monstro aterrorizador. É uma das piores recordações da minha infância, a (longa) fase em que só a aproximação da hora de dormir já era, por si só, um pesadelo.
O Francisco, felizmente, não é dado a pesadelos. Mas é dado a introspecções e receios, e foi precisamente quando nos estávamos a preparar para a leitura da noite que ele disse: «Eu tenho medo da vida, mãe, e agora com estas coisas todas que ando a aprender em Estudo do Meio também tenho medo do corpo! Tu não gostavas de voltar a ser criança? Eu não quero crescer, não quero envelhecer, não quero adoecer, não quero morrer. O que achas que acontece quando morremos?»

Antes de mais, as minhas desculpas por voltar ao tema da semana passada. Não era isto que tinha planeado, mas esta é uma rubrica orgânica, de certa forma, e não podia deixar de tentar arrumar este momento com a ajuda dos meus amigos de sempre, os escritores e os músicos.
As perguntas difíceis do meu filho não são de agora, aos 9 anos, evidentemente: eles começam cedo. Vocês não se sentem incompetentes nestas alturas? Vocês, está claro, os que, como eu, não têm uma crença definida à qual recorrer.

«It's alright
It's alright
I seem to have misplaced my words
And they're all out of time»

 
Esta canção de embalar de Richard Swift foi a primeira que ouvi dele, há uns 14 anos, na Radar: vi-me grega para descobrir quem era aquele cantor e a partir daí nunca mais o perdi de vista. Mesmo agora, que já não está entre nós, acompanho as homenagens que lhe são feitas com frequência. E ouço-o, muitas vezes, porque me embala.

Ouvir o Francisco — eis outra coisa que pratico com muita dedicação. Quando ele é acometido por estas crises existenciais, deixo-o falar. Quando já sinto que posso intervir, faço-o com duas verdades bem presentes: primeiro, que não tenho uma resposta minimamente aceitável; e, segundo, que tenho que falar, falar, falar, e fazê-lo falar, falar, falar, porque as conversas, bem se sabe, são como as cerejas, e havemos de conseguir sair daquele buraco negro e alcançar paisagens mais condizentes com a necessidade de adormecer tranquilamente. Expliquei-lhe que sempre me debati (e debato, pois!) com as mesmas dúvidas, mas que a dada altura da minha vida, provavelmente ainda na adolescência, tive uma epifania.
 
— Quando pensas no tempo anterior ao teu nascimento, quando eu era pequenina, por exemplo, achas isso assustador?
— Não, é muito estranho pensar que eu não existia, mas não é assustador.
— Para mim, não existir é uma coisa apenas. Se é antes ou depois de ter existido, é indiferente. Portanto, não me é desconhecido. Eu já lá estive. Eu já não existi. E essa ideia, de alguma forma, acalma-me.

Não resolvi a questão (nem a dele nem a minha), até porque ele está mais inclinado para acreditar na reencarnação, «faz muito mais sentido». Mas venci o monstro do momento, acabámos a falar de política e fomos ambos dormir mais ou menos descansados. Até que as questões nos voltem a assaltar, claro. Talvez seja por isso que não consigo adormecer sem ler. É a minha armadura.



O que acham? Haverá uma resposta armazenada no sótão do mundo?

Good Dog, de Paula Rego

Bom dia a todos,
Marta

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