Família


Queridas Senhoras,

outra vez domingo. A Calita e a família devem andar em passeio. Fiquei com inveja desta ideia que li no Panados e Arroz de Tomate, fazer um passeio diferente todos os domingos. Sigo e admiro a Calita há muito tempo, gosto das suas histórias familiares, o que eles fazem com o tempo e com a vida. Já pensei várias vezes que devíamos instituir algo semelhante cá em casa, passeios regulares à descoberta do património, da natureza, das vilas e cidades. Semanalmente é impossível, cada um tem as suas coisas, e até uma vez por mês é complicado. 

Tramado, isto da família. Uma das crónicas do MEC que nunca esqueci é aquela que diz que o ideal seria os membros da família viverem em casas separadas. Não é apenas essa tendência burguesa de os casais terem duas casas, é mesmo uma casa para cada elemento da família. Cada um mantém a privacidade e independência e convida ocasionalmente os outros para jantar, passear, namorar.

Isto é uma caricatura, certo. Mas muitas vezes a realidade é igualmente caricata. Três, quatro ou mais pessoas juntas num espaço em geral pequeno, a gerir diariamente limpezas, refeições, higiene e afazeres pessoais, discussões, tristezas, entusiasmos, birras, dúvidas, crises de toda a ordem. Tem tudo para dar errado.

A primeira imagem do filme Listen, de Ana Rocha de Sousa, é um soutien gasto a secar no estendal. Na casa de família o ambiente é de quem vive com dificuldades. A humidade enegrece as paredes, o espaço é exíguo, irrespirável. Uma família pobre, nem sequer remediada, que se vê aflita para assegurar o bem-estar dos filhos. Não são desempregados, a mãe esfalfa-se a limpar casas, o pai foi despedido e aguarda o pagamento em dívida. Trabalham, mas mal sobrevivem. (Quando ouço os patrões dizerem que seria um atentado aumentar o salário mínimo, só penso que deveriam ser obrigados a viver por um mês num destes buracos húmidos, sair de madrugada para apanhar transportes e voltar noite cerrada para a dupla ou tripla jornada, comer atum do mais barato, e afligirem-se pelos filhos e netos sem um canto ou tempo para estudar, por terem de ajudar a cuidar de irmãos mais novos e sabe-se lá que mais).

Segundo o filme, e o filme é baseado na investigação de dezenas de casos reais, é muito comum a Segurança Social britânica retirar crianças a famílias deprimidas. A mães deprimidas, sobretudo, pois sabemos que são as mães quem mais deprime. Bela (Lúcia Moniz, desempenho devastador) não é uma mãe deprimida, nem sequer derrotada. Tem força, inteligência, é carinhosa, atenta. Mas a vida passou-lhe por cima. 

Ainda sou tempo em que se dizia que com esforço e trabalho tudo se consegue. "Desde que te esforces, tudo vai correr bem". É mentira. Muita gente esforça-se para lá das suas forças e tem vidas de merda. As capacidades médias deveriam chegar para uma vida digna e confortável. A maioria de nós não é herói ou génio, capaz de ultrapassar todos os obstáculos. Por cada história "inspiradora" desse tipo, há muita gente a sentir-se culpada por não estar a conseguir. Porque é esforçada, trabalhadora, dedicada, mas nada disso é já suficiente. No filme, adivinha-se quem vai salvar esta família da derrota total: a família de origem. Os avós. A Bela e o Jota são um casal português do nosso tempo.

Até para a semana,

Céu

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