Contra o ódio e o vazio, a festa da linguagem

Queridas Senhoras,

já aqui disse como foi difícil em 2020 concentrar-me na leitura, apesar de todos termos supostamente mais tempo para ler, porque a atenção foi sugada para um só tema e andámos bastante atarantados. Felizmente, estou a conseguir recuperar alguma concentração, algum ritmo, e tenho lido bons livros. Actualmente, parece que tudo concorre para nos desviar da leitura aprofundada e atenta, reféns que estamos do scroll constante, da próxima polémica, do ódio, do discurso vazio.

Vem isto a propósito da visível excitação das últimas semanas causada pelos debates presidenciais em que participou o candidato da tristeza e da vergonha. Designo-o assim porque é como me sinto, triste e envergonhada, ao verificar que um discurso tão reles, tão vil, encontra eco em muita gente. São muitos os que dizem esta coisa letal: "ele até diz algumas verdades", "ele até tem alguma razão", "algumas medidas até são precisas". É este até que me mata. Este até tão português, tão bem explicado pelo MEC nas suas crónicas de antologia. Um até que encerra aceitação, cumplicidade, desonestidade, fraqueza, egoísmo, desistência, ignorância.

Eu também vi excitadamente os debates, também desejei infantilmente que alguém lhe desse uma lição, uma sova, que o desmascarasse em prime time num passe de mágica. Só que não funciona assim. Ele já foi desmascarado inúmeras vezes, mas continua a ter apoiantes que acham que Portugal até precisa de uma figura assim. Invariavelmente, o conteúdo dos debates é muito fraco. Depois de ouvir trinta minutos daquele relambório, fica uma sensação de tristeza, vazio. 

E então a leitura tem um efeito surpreendentemente regenerador, frutífero, expansivo, cheio de esperança. Comecei a ler Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo. Uma só página deste romance fervilhante sobre privilégio, desigualdade, racismo, género, classe, regenera-nos de todo o discurso bruto, básico, opressor. É uma narrativa de histórias entrecruzadas de mulheres negras, contada com uma inteligência, um humor e uma vivacidade de acordar mortos e entorpecidos.

    a partir de agora o pessoal já não te vai ver como uma mulher ponto final, vão ver‑te como uma branca que se dá com gajas blacks e isso vai tirar‑te alguma cotação, mas, a sério, não deixes que te tirem nenhum dos privilégios a que tens direito precisamente porque és branca, já deves ter ouvido falar nisto, não, babe? há privilégios que temos automaticamente só porque nascemos com determinada cor de pele ou em dado estrato social
   ao que a Courtney respondeu que, sendo ela filha de um professor e de uma encenadora famosa, dificilmente se pode dizer que seja uma desfavorecida, enquanto ela, Courtney, vem de uma comunidade muito pobre onde é norma ir‑se trabalhar para uma fábrica aos dezasseis e ter o primeiro filho aos dezassete, e sem estar casada, além de que, na prática, a quinta do pai pertence ao banco
    iá, Courts, acontece que eu sou black, portanto, sou mais oprimida do que todos os que não são, tirando a Waris, que é a mais oprimida de nós todas (não lhe digas que eu disse isto)
    porque encaixa em cinco categorias: é black, é muçulmana, é mulher, é pobre e usa véu islâmico é a única delas que não nasceu automaticamente com privilégio nenhum
    ao que a Courtney respondeu que a Roxane Gay alertou contra embarcar nas «olimpíadas dos privilégios» e que no seu livro Bad Feminist explica que os privilégios são relativos e contextuais, e eu concordo com ela, Yazz, mesmo, senão isto vai até onde? achas que o Obama é menos privilegiado do que um parolo americano que cresceu num parque de atrelados filho de uma mãe solteira e toxicodependente e de um pai sempre a ir e vir da prisão? e será que uma pessoa com um grau elevado de incapacidade é mais privilegiada do que um sírio que foi torturado e anda à procura de asilo político? a Roxane defende que precisamos de um novo discurso para discutir a questão das desigualdades
    ela fica sem pio, quando raio é que a Court andou a ler a Roxane Gay – que é ESPETACULAR?
    terá aquilo sido um momento discípulo bateu o mestre? 
#BrancaDáBaileàBlack
pp. 75-76

Até para a semana,

Céu

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