Crítica da arrumação pura

Ilustração: Alice Gomes

Queridas Senhoras,

outra vez domingo, mais um fim-de-semana de limpezas e arrumações. Com o confinamento, passamos muito mais tempo a limpar. Basicamente, a casa está sempre suja porque está sobrecarregada de actividade humana. Quatro pessoas a existir o dia inteiro dentro do mesmo espaço implica sujidade permanente. 

A cozinha é a divisão mais castigada por causa das incontáveis refeições. Há sempre louça por lavar, o fogão já brilhou mais, o chão nunca chega a estar bem varrido. A casa de banho também tem uma utilização nunca antes vista. Ninguém anda propriamente a fazer coisas fora de casa e as necessidades muito menos. Aquele consolo e bem-estar que normalmente surge após a limpeza da casa é cada vez mais fugaz. 

Para obter o mesmo grau de satisfação é preciso mais. Por isso tentamos fazer limpezas e arrumações mais profundas. Mexemos com cantos que não gostam de ser mexidos. E invariavelmente encontramos humidade e outras coisas desoladoras. Pegamos em detergentes, panos com lixivia, esfregamos furiosamente. Tudo o que queremos é ter algum controlo. Se aquela parede voltar a ser branca, alguma coisa fizemos bem. Só que escarafunchar os cantos à casa só nos confronta com a imensidão da tarefa. Descobre-se ainda mais humidade do que a que estava à vista. Rachas nos móveis. Peças soltas. Janelas emperradas. Quilos de roupa que não usamos. E um monte de tralha em todo o lado. 

Era aqui que eu queria chegar. À mania das arrumações, elevada a sub-género da auto-ajuda, graças às gurus da organização doméstica. As Kondos da vida que arrumam gavetas como quem organiza paradas militares, com as cuecas perfiladas por cores e padrões, batalhões de meias todas irmanadas (meia sem par, vergonha do lar), tupperwares por ordem de patente.

É claro que a compulsão para destralhar cresce no confinamento. É a questão do controlo. Eu sou capaz de dominar aquela gaveta. É só uma gaveta cheia de quinquilharia. A estante atolada de papelada? Então, andei a tirar um mestrado para quê? Não serei capaz de organizar papéis? Acontece que sou a pior pessoa para deitar coisas fora... Se me ponho a tentar escolher, fico a olhar para fotocópias e apontamentos e a pensar "ainda posso precisar disto, sei lá se não volto a estudar estas matérias, outro curso vinha a mesmo calhar... ". E então volto a arrumar textos de sociólogos, filósofos, linguistas. As fichas de Alemão e os manuais de Espanhol ficam no mesmo sítio porque entretanto me pus a divagar acerca de tudo o que ainda posso fazer. E entretanto já não estou a arrumar as minhas coisas, mas sim as de alguém que fala quatro línguas e veste o 36 (bom, é um 36 grande e de facto posso voltar a usar essas calças, basta ser mais disciplinada na alimentação e fazer mais exercício. Aliás, estive a organizar a roupa desportiva e não deitei nada fora. Nem as t-shirts mais coçadas, e até com um buraquinho ou outro, porque às vezes dão jeito, pode não haver mais nenhuma lavada, quando chove durante muitos dias às vezes acontece. Já aconteceu! E também dão jeito para pintar a casa e às vezes os miúdos precisam de t-shirts velhas para trabalhos da escola. É ou não é? Ah!). Dou a volta aos armários e acabo por conservar a maior parte das peças de roupa. Estratégia: durante uns tempos, procuro dar uso a peças que não vestia há meses, só para justificar mantê-las em casa. Até me esquecer e voltar a rodar entre as mesmas cinco camisolas de sempre.

Portanto, passamos demasiado tempo em casa. Sei que tem de ser, mas a casa ressente-se da nossa presença excessiva. Não tem tempo para respirar, para fazer a auto-limpeza aos chacras, para se regenerar da vozearia e do incessante rame-rame. Antes, nas oito ou nove horas diárias em que estávamos ausentes, produzia-se uma saudade boa. A casa tinha respirado silêncio durante todo o dia e estava preparada para nos acolher. E nós, desejosos de ser acolhidos, éramos benevolentes com ela e fazíamos vista grossa aos defeitos.

Agora vivemos um excesso doméstico. Acordamos, dormimos, cozinhamos, comemos, trabalhamos, estudamos, brincamos, vemos filmes, fazemos desporto em casa. Largamos mais suor, células mortas, cabelo, pó. Há mais louça suja, mais lixo, mais dejectos. E passamos mais tempo a limpar tudo isso. E a destralhar para que a casa, e nós, possamos mover-nos e respirar melhor.

Mas a verdade, e o mais importante, é que é maravilhoso ter saúde para dar conta de limpezas e arrumações. E permissão para ir à rua fazer compras e caminhar. E admiro bastante quem consegue aplicar os princípios militares das generalas das gavetas, armários e despensas. E agora deixem-me ir que vou tratar daquele caixote de revistas antigas. Se bem que dá sempre jeito guardar algumas, às vezes os miúdos precisam para trabalhos manuais, e há artigos interessantes que ficaram por ler, quem me diz que uma tarde destas não me apetece pegar num ou noutro, e além disso (não estejam para aí a revirar os olhos), ainda este Natal fiz embrulhos com folhas de jornais e revistas antigos, e que giros ficaram, por isso estão a ver, e por acaso até estou aqui a pensar que o melhor é adiar a selecção de revistas, vou antes ver as gavetas da cozinha, este monte de velas não vou deitar fora porque há sempre um aniversário que precisa deste 1, 4, 6. É ou não é?

Até para a semana,

Céu

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