Liberdade a sério

Ilustração: Alice Gomes

Só há liberdade a sério quando houver / Liberdade de mudar e decidir
Sérgio Godinho

Queridas Senhoras,

pela segunda vez, vivemos o 25 de Abril em confinamento. Ainda por cima caiu agora uma chuvada bíblica. Mas o Sol já espreita outra vez. Não vou dizer que "nunca foi tão importante lutar pela liberdade". Este é um desígnio sempre urgente, o trabalho nunca está feito. Talvez não imaginássemos que no nosso tempo de vida iríamos ter de lutar contra o fascismo. Argumentar com vizinhos, colegas, amigos, familiares que acham que "isto está a precisar de uma grande volta." Ter muita cautela com a desinformação e com as manobras políticas que se aproveitam de tudo para descredibilizar a força da democracia. Cabe na cabeça de alguém duvidar de que 25 de Abril é de todos e de cada um?

A luta é diária e faz-se no terreno com aqueles que nos rodeiam. Parece que afinal sobrou muito trabalho e não andamos cá só para ver séries e instalar apps. Atravessamos uma pandemia, coisa nunca vivida pelos que hoje estão vivos. A vida profissional, familiar, pessoal levou um abanão tal que não sabemos de que terra somos nem onde iremos parar. O teletrabalho tornou-se comum, mas não temos noção se isso é bom ou mau para nós. Sabemos que as condições de empregabilidade se degradam, que a vida não está fácil para ninguém, muito menos para as mulheres, sobre quem continua a recair o esforço de conciliar o trabalho, ou o teletrabalho, com a gestão doméstica, o cuidado de crianças, a assistência a idosos, numa casa estranhamente transformada em unidade de produção familiar, onde as barreiras entre o pessoal e o profissional se esbatem.

A posição das mulheres continua a ser particularmente frágil. Uma recente denúncia de assédio sexual no meio televisivo suscitou comentários sobre as intenções e a credibilidade da vítima, e não sobre o sistema que permite e tolera a existência dos abusos. Alguém aparentemente tão insuspeito como Rui Unas anuncia uma entrevista com um homem que filmou actos sexuais sem o consentimento das participantes, alegando que "não somos só as asneiras que fazemos". Esse senhor, alvo de um escândalo nos anos 80, prosseguiu a sua vida e a sua carreira de peito aberto, sem vergonha. A margem para os homens fazerem asneira é infinita. A das mulheres, muito pequena. O assédio é especialmente nojento porque muitas vezes não é sequer declarado, é implícito. Pequenas sugestões de que "se não cooperas, não vais a lado nenhum". Isto enquanto o alvo for desejável e tiver valor no mercado sexual. Depois, passa à prateleira. Enquanto houver, nas empresas, nas universidades, nas fábricas, em qualquer lugar, alguém que se faça valer da sua posição para coagir outra pessoa, isso tem de ser denunciado, e tem de haver um ambiente de confiança e apoio para quem denuncia. Não é "caça às bruxas", é justiça.  

Cuidado com os alertas sobre a queda da natalidade e a pressão que recai sobre as mulheres para terem filhos. Engravidar e ter um filho significa abdicar do corpo durante quase dois anos. Nove meses de gestação, mais um ano de amamentação e cuidados permanentes. Isto numa sociedade extremamente agressiva e penalizadora para as mulheres. Aos 20 anos, és muito nova. Aos 35, cuidado, estás a ficar velha. Se o tempo de gerar filhos coincide com a possibilidade de evoluir numa carreira profissional, que margem têm as mulheres para escolher, construir e assegurar a sua independência? A empatia pelas mulheres que cuidam é muito baixa. Considera-se que cumprem apenas a sua obrigação, o seu papel reprodutor. 

Insisto no discurso social sobre as mulheres porque o mesmo é muito revelador da sociedade profundamente machista e misógina em que vivemos, para lá da bolha dos nossos amigos de mente aberta e inclusiva. E apesar de eu não os ler, é nos famigerados comentários nos jornais e nas redes que fermenta e grassa essa verborreia que também corre as mesas dos cafés e das tabernas, mas também nos salões de cabeleireiro onde senhoras de bem comentam as vidas das outras. Nesse discurso perpassa o ódio às mulheres. Às mulheres que não se calam, que denunciam, que não se submetem, que não aceitam ser subjugadas, julgadas, condenadas. À vergonha, ao desemprego, à ostracização, à exclusão. Nesse discurso fermenta o puro ódio à Liberdade.

Feliz 25 de Abril.

Até para a semana,

Céu

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