Pela Páscoa

Queridas Senhoras,

há uns meses, partilhei aqui no blogue alguns dos textos que escrevi no curso de Arte da Crónica. Não partilhei este, escrito há precisamente um ano, porque o considerei demasiado pessoal. Publico-o agora, embora não na íntegra. Gostei de escrever e partilhar esta crónica no círculo restrito daquelas aulas, mas aqui tive de editar as partes mais íntimas, em especial as que se referem a outras pessoas. Suponho que a determinada altura irei ultrapassar esse pudor, mas ainda não.

Pela Páscoa

Não me lembro se chegámos a passar a Páscoa na aldeia. Quer dizer, devemos ter passado, pelo menos duas ou três vezes. Se calhar, apenas uma vez. No Verão, íamos sempre, não faltam memórias dos meses quentes. Mas do frio que ainda faz em Abril na Beira Alta, parece que guardo uma única manhã de Páscoa.

Isto sei: há uma toalha de linho branco muito bem engomada a cobrir a mesa comprida da sala de jantar. Um prato com meia-dúzia de laranjas grandes. As travessas de arroz-doce em cima do aparador. Nunca falta arroz-doce em dias de festa.

(Mesmo nos últimos anos, quando aparecemos de fugida no último fim-de-semana de Agosto ou no primeiro de Setembro, a tia teima em fazer arroz-doce. E uma panela de sopa, não sei o que lhe põe, é o que há, o que houver, mas sopa nenhuma tem aquele sabor. E uns pastelinhos de bacalhau, não custa nada, filha, uma massa de frango, junta-lhe assim umas ervas, alecrim ou tomilho, não sei, acho que não são as ervas. É ela. Tudo nos sabe pela vida, o momento torna-se muito presente. É estranho, sinto isso poucas vezes, por isso reconheço logo. Felicidade instantânea a espalhar calor pelo corpo todo.)

Deve ter sido nessa Páscoa que fomos na procissão. Lembro-me do andor recortado no céu muito azul da manhã fria da aldeia. O leve odor a queimado, aquele cheiro característico (as saudades desse cheiro assaltam-me muitas vezes, farejo-o sempre que visito aldeias). As vestes do padre a roçar o chão. A visita de casa em casa, a mesa muito bem-posta, a toalha de linho puro engomada, o prato de laranjas. Deviam lá estar as tias e as primas todas. Como no poema, éramos felizes e ninguém estava morto. Há muitos vivos, ainda. A avó Céu e o avô João já foram há muito (os seus fatos de domingo na manhã de Páscoa), mas temos a tia, as primas e os primos mais novos. A tia está no centro de dia, ao lado de casa, ainda dorme na sua cama. Acho que já não faz arroz-doce nem coze os biscoitos no forno cá fora. 

(…)

Na cidade, nunca íamos à missa. Na aldeia, fazíamos questão. No adro, juntava-se muita gente em convívio domingueiro. Este ajuntamento era o ponto alto. Que pena não ter guardado as roupas que vestíamos nesses domingos. Vestidos de folhos, sandálias de fivela, meias de renda branca. Quer dizer, foi só uma Páscoa, por isso se calhar foi só um vestido. Guardamos tanta tralha, e os tesouros desaparecem.

Na aldeia cumpriam-se todos os rituais. O linho branco, as laranjas. A toalha vinha da arca (há sempre uma arca) e fazia lembrar tempos mais antigos, o tempo daqueles que nos olhavam dos retratos sépia pendurados nas paredes toscas da casa velhíssima. Os mais velhos desfiavam, esta é a avó Amália, este é o avô João Alexandre, a tia Maria, a Guilhermina, a Zeca, o Toninho… E nós, as primas, um tanto enfadadas, a fazer que sim.

Remexo nas gavetas (não tenho arca) à procura do pano de linho grosso que a tia me ofereceu há uns anos. É um belo pano, mas pequeno. Estendo-o sobre metade da mesa. De uma rua distante na cidade vazia chega-me o bater dos sinos. Desço num pulo à mercearia a aviar meia-dúzia de laranjas. Ligo à tia para ouvir a sua voz quebrada, cantada. Ela descreve-me o que vê da varanda, eu sinto o cheiro. Peço-lhe a receita do arroz-doce.


Uma Páscoa feliz!

Céu

Comentários

  1. Belíssimo texto. Deu-me vontade de arroz-doce. Páscoa feliz!

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