Se eu fosse Filha da Madrugada

Queridas Senhoras,

aqui há uns anos, quando fizemos 40, a Marta lembrou-se de auscultar as mulheres na casa dos 40, e várias senhoras da nossa idade responderam à chamada. Lembrei-me disso agora que começou a passar na RTP 3 a série de entrevistas Os Filhos da Madrugada em que Anabela Mota Ribeiro conversa com nascidas e nascidos de 1974 em diante.

Faço o exercício de reflectir sobre o que diria se fosse uma das convidadas do programa.

Nasci em Julho de 1974. A politica sempre esteve presente na minha vida. Na minha família sempre se falou muito do 25 de Abril. Desde sempre recordo toda uma iconografia de símbolos e uma banda sonora tocada à viola pelo meu pai com quem aprendemos as músicas do Zeca Afonso. Os meus avós maternos, alentejanos, eram bastante politizados. As férias não eram passadas no Alentejo, mas sim na Beira Alta dos avós paternos. Guardo muitas memórias felizes desses verões à beira-rio. É por isso que um filme como Aquele Querido Mês de Agosto facilmente me leva às lágrimas. Tenho uma nostalgia aguda do campo e da aldeia, embora adore a vida citadina (ruas, jardins, livrarias, cinemas). 

Cresci numa casa cheia de livros. Tive acesso a tudo o quis, sem restrições. Literatura, cinema, teatro. Não me recordo de desejar alguma coisa que não pudesse ter e acho isso espantoso, dado que vivia com todo o conforto, mas sem quaisquer luxos. No ensino primário, frequentei um colégio feminino, algo um tanto anacrónico para o início dos anos 80, mas foi por uma questão de conveniência. O colégio ficava na rua dos meus avós, com quem eu passava o dia enquanto os meus pais estavam a trabalhar. A partir do 5.º ano fiz todo o percurso na escola pública. De toda a vida na escola, e da maioria dos professores, guardo as melhores recordações. Ainda hoje gosto da escola e, sempre que posso, faço mais um curso.

Um sentimento que por vezes me assalta é o de ter feito pouco com a minha liberdade, de estar a fazer pouco. De não ter um papel mais activo em termos cívicos ou políticos, de não estar à altura dos tempos que atravessamos, de me deixar derrotar sem dar luta pelo sistema económico que me mantém refém por poder enviar-me para o desemprego a qualquer momento, descartar-me à beira dos 50 anos, apesar de ter sempre investido na minha formação académica e experiência profissional, nunca ter estado parada, ter-me empenhado em leituras e todo o tipo de esforços para não ficar para trás. Mas a sensação é de que não chega, nada é suficiente.

O 25 de Abril continua a ser um tema de conversa com os meus filhos. Levamo-los a desfiles e manifestações e conversamos muito sobre o que se passa actualmente em termos políticos, em Portugal e no mundo. E também sobre racismo, igualdade de género e todo o tipo de desigualdade. Aqui noto uma diferença acentuada. Estes temas não estavam muito presentes quando eu era criança. O machismo e o racismo, por exemplo, eram práticas bastante normalizadas. Só olhando para trás consigo identificar práticas que eu aceitava sem questionar e hoje acho intoleráveis, como ter padrões diferentes para o comportamento das raparigas e dos rapazes. Ou ser normal contar todo o tipo de anedotas racistas, homofóbicas, misóginas e ainda esperar risos e cumplicidade.

Estes quase 47 anos que levo de vida foram felizes, mas confesso que não sei o que esperar dos próximos 40.

Até para a semana,

Céu

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