"Pouco de nós se assemelha à luz. Estamos muito mais próximos da escuridão, somos quase escuridão, tudo o que temos são recordações e a esperança que, em todo o caso, se desvaneceu, continua a desvanecer-se e em breve se assemelha a uma estrela extinta, um rochedo escuro. (...) Deixa que isto baste por agora, enviar-te-emos as palavras, essas confusas e esparsas equipas de salvamento incertas da sua tarefa, com bússolas partidas, mapas rasgados ou desactualizados mas que, ainda assim, deverás acolher de bom grado. Então, veremos o que acontece."
- Jón Kalman Stefánssom, Paraíso e Inferno -
Queridas Senhoras,
o último livro que li em 2013 levanta tantas questões que não sou capaz de escrever apenas um post para vos falar dele. Paraíso e Inferno, a primeira obra do islandês Jón Kalman Stefánssom a ser publicada em português, pela Cavalo de Ferro. É um livro sobre pescadores, e não há descrição de pesca que não me lembre os quadros de Turner, como o da imagem acima.
"O dia aproxima-se, o vento torna-se mais forte e mais frio, nascido do gelo que enche o mundo atrás do horizonte, não remaremos nessa direcção, o Inferno é o frio. (...) Maldito impermeável, esqueci-me dele, e Bárdur pragueja, ele pragueja por se ter concentrado desnecessariamente na memorização de versos do Paraíso Perdido [de Milton], tão concentrado que se esqueceu do seu impermeável. (...) Os palavrões são pequenos pedaços de carvão e podem aquecer as coisas, mas as palavras infelizmente pouco podem fazer para manter afastado o vento árctico, infiltra-se e atinge a carne, um sobretudo razoável é muitas vezes melhor e mais importante do que todos os poemas do mundo."
Terá Bárdur sido feliz enquanto decorava aqueles versos, imensamente feliz, ao ponto de valer a pena perder a vida em troca desses momentos? Hoje apareceu no meu feed do Facebook uma citação de Agualusa, do seu livro O Vendedor de Passados, que, na verdade, despoletou este post: "A felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos." Bárdur fechou os olhos, foi irresponsável, pagou-o com a vida. Paraíso ou inferno? De que o terão resgatado, afinal, as palavras de Milton, "essas confusas e esparsas equipas de salvamento"?
Algumas informações que me chegaram recentemente poderiam ajudar-me a especular um pouco. O tédio, por exemplo, um monstro silencioso e tentacular. A emoção de Bárdur ao decorar aqueles versos de amor teria sido antídoto eficaz contra qualquer um dos cinco tipos de tédio actualmente identificados. Cinco tipos diferentes, faziam ideia? E, segundo os estudiosos, aquele que foi identificado mais recentemente chega-nos a todos. Será o tédio o que nos move, ainda que não tenhamos disso consciência? Se bem que, em abono da verdade, eu deva confessar que sempre tive consciência do espectro do tédio a pairar sobre mim. Muitas vezes me socorri (e socorro) do profundamente entediado Fernando Pessoa para me libertar dessa insidiosa teia.
E teremos mesmo que fechar os olhos para sermos felizes? Andrew Solomon protagoniza uma TED Talk absolutamente brilhante sobre um tema acerca do qual toda a gente fala mas quase ninguém sabe o que está a dizer: a depressão. E, a certa altura, diz:
"You don't think in depression that you've put on a gray veil and are seeing the world through the haze of a bad mood. You think that the veil has been taken away, the veil of happiness, and that now you're seeing truly."
Voltando à peça sobre os diferentes tipos de tédio que nos atingem, diz-se sobre o 'tédio apático': "Apathetic boredom was more like depression in that participants felt flat and incapable of emotion, the researchers wrote."
Solomon abre a conferência com uma afirmação que, para mim, faz todo o sentido: "The opposite of depression is not happiness, but vitality." Eu acrescento que também é o oposto do tédio, a vitalidade. Nunca tinha encontrado uma palavra para definir aquilo que eu almejo. Não é a felicidade, não sei bem o que isso seja, e não poderia, em boa consciência, pretender eliminar da minha vida todos as emoções menos felizes, sob pena de esvaziar-me de muito daquilo que sou. É a vitalidade. Uma palavra apenas. É mágico, não é? Até hoje, precisava de todas estas palavras de Álvaro de Campos para me explicar:
"Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida."
São sempre as palavras que nos salvam. Bárdur foi salvo (pelo Paraíso Perdido de Milton) de não sentir plenamente aquele amor que lhe invadia a alma. Desejo, para este e para todos os anos, que combatamos eficazmente os demónios que nos espreitam com vitalidade. Sentir. Se sentirmos, não há paraísos perdidos.
Beijinhos a todas
[...] There is a light that (never) goes out [...]
ResponderEliminar[...] aqui escrevi um primeiro post acerca deste livro, Paraíso e Inferno, de Jón Kalman Stefánsson, e na ocasião preveni que não [...]
ResponderEliminar[...] Como Paraíso e Inferno, que ainda não li, sobre o qual a Marta escreveu recentemente dois posts, aqui e [...]
ResponderEliminar[...] último livro que li em 2013 foi o primeiro (e único, até agora) de um autor islandês: Paraíso e Inferno, de Jón Jalman Stefásnsson, um livro sobre livros, sobre pescadores, sobre a morte, sobre a amizade, sobre Deus. Um pequeno [...]
ResponderEliminar[...] Jón Kalman Stefánsson (e aqui) Keeping Things Whole [...]
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