Percentagens



House by the railroad, de Edward Hopper

Queridas Senhoras,

dizia o senhor Hopper: «Maybe I am not very human - what I wanted to do was to paint sunlight on the side of a house.» Lembro-me deste desabafo muitas vezes, quando a enormidade de certas tarefas me ameaça. E, reparem, quando digo 'certas tarefas' posso muito bem estar a referir-me, apenas, à festa das mães na escola do Francisco, ou à proximidade da Queima das Fitas e de toda a logística que teremos que engendrar para fugir dela. Ou ao livro que estou a escrever.

Então, o que é que faço? Procuro reduzir a enormidade ao sol a incidir no lado de uma casa. Para a festa (o que vestir, é para ir confortável, está calor ou frio?, e quanto tempo demorará, tenho tanto que fazer, tenho que me lembrar de carregar a bateria do telemóvel para tirar fotografias, oh, não, esqueci-me de tirar fotografias), tudo o que eu queria era dar ao Francisco a minha presença lá, por isso, fui. Para a Queima das Fitas (até já me dói o estômago só de pensar nas noites em branco, mas o carro não está bom, o dinheiro anda contadinho, e não nos dá jeito nenhum tirar férias agora, e para onde iríamos, e por quanto tempo?), tudo o que eu quero é sair deste prédio durante uma semana, por isso, ficamos em Coimbra mas acampamos em casa de amigos. Para o livro (ui, cada frase pode ser um tormento, e cada parágrafo pode levantar novas dúvidas, e cada capítulo pode trazer ideias para novos livros, e será que eu consigo, e será que eu gosto do resultado, e se eu não gostar? E se ninguém gostar?), tudo o que eu quero é pensar melhor, por isso, escrevo.

Há uns tempos conheci Russel Chatham num documentário, um pintor (entre outras coisas) que fez parte do êxodo artístico para o Montana nos finais dos anos 1960. Graças às novas tecnologias, pude fazer pause e rewind para transcrever uma porção do seu discurso, com uma belíssima paisagem natural em fundo: «Quando olhas para este rio, enquanto pescador, só estás interessado numa percentagem do rio. Passa-se o mesmo com esta paisagem. Apenas uma porção dela será a faísca de um quadro. E o que virá a ser esse quadro? Não sei.»

Talvez eu não seja muito humana quando só estou interessada numa percentagem da vida. Mas perco-me quando perco de vista aquela luz do sol a incidir sobre o lado da casa, e reencontro-me quando me reencontro no seu encalço. Por isso, persisto.

Beijinhos,

Marta

Comentários

  1. Ah querida Marta... que belo texto literário :-) Obrigada pela inspiração <3

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  2. Querida Ângela, eu é que agradeço, sabe bem saber que os amigos vão estando por aí à espreita! Beijinhos :)

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  3. sandra catarino06/05/14, 14:00

    Também à espreita, também rendida! Um beijo, Sandra.

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  4. Obrigada, Sandra! Beijinhos

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  5. [...] Envelhecer Feedly Gramática Herberto / Hopper  (e aqui) [...]

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