Um rapaz da Reboleira



Querida Senhoras,

o Clube Literário da Amadora convidou João Ricardo Pedro (n. 1973), o engenheiro desempregado que venceu o Prémio Leya em 2011 com o seu romance de estreia, O Teu Rosto Será o Último, e acaba de publicar o segundo - Um Postal de Detroit - que estou a ler neste momento.

A história do engenheiro-desempregado-escritor é muito apelativa e foi (bem) aproveitada pelo marketing da editora. É uma espécie de conto de fadas moderno, para mim mais atraente do que as narrativas, exploradas até à náusea, das startups e do miúdo universitário que inventou uma app e ficou milionário de um dia para o outro. O empreendedorismo consegue ser tão chato e pouco romântico…

Como se a história não tivesse já atractivos suficientes, calha que JRP é um rapaz da Reboleira, o que é mencionado logo na primeira linha da biografia que consta da badana. Reparem que não se diz que ele é da Amadora. Amadora é bom mas Reboleira é melhor. Experimentemos outras alternativas: um rapaz da Venteira, um rapaz de Alfornelos, um rapaz da Brandoa (bom!), um rapaz da Buraca (demais)…

Sendo eu uma rapariga da Reboleira, e apenas um ano mais nova que JRP, fico entusiasmada com estes detalhes. Provavelmente, frequentámos as mesmas escolas, a Roque Gameiro e o Liceu (se calhar os Anexos), a mesma piscina, o pavilhão da Académica, o café ao lado do Liceu, as matinés do Lido e ele devia ir também aos jogos do Estrela. Reboleira, anos 80 e 90. Quase dá vontade de chorar.

Não costumo ligar muito à biografia dos escritores nem me importa especialmente saber se são pessoas afáveis, de bom trato. Quer dizer, são bons escritores (se o forem) mas não têm obrigação de ser boas pessoas. Mas neste caso foi com um misto de curiosidade e receio que me dirigi à Biblioteca Municipal Piteira Santos para ouvir JRP de viva voz.

O conto de fadas é tão bom que o moço não só é, como parece mesmo um rapaz da Reboleira. Peneiras, nenhumas. Pose descontraída mas não blasé, uma franqueza no rosto, uma disponibilidade sincera para escutar e falar numa sala com a meia-dúzia de gatos-pingados do costume.

Por muito que queira intervir nestas sessões, normalmente não o faço por timidez ou pudor. Mas o sorriso honesto de JRP deu-me coragem e, além disso, estou muito envolvida com o livro e trazia uma passagem sublinhada, caso a oportunidade surgisse.

Noventa páginas após o início do livro (92 para ser precisa) o narrador dirige-se ao leitor pela primeira vez, interpelando-o. Isto pôs-me em estado de alerta. Se durante 90 páginas esse recurso não foi utilizado, porquê empregá-lo nesta altura? Quase suspendo a respiração, sei que estou prestes a ler alguma coisa muito intensa.

JRP confirma que se lembra do local e da hora exacta em que escreveu esse parágrafo e da sensação de felicidade que o preencheu ao completá-lo. Sentiu que tinha atingido ali qualquer coisa importante, uma emoção verdadeira. O trecho é tão intenso que depois de o ler fiquei uns bons minutos a reviver aquela memória.

[Trinta anos depois, o narrador recorda o último Verão que passou com a sua irmã Marta, antes de ela desaparecer. Ele era então um miúdo de 10 anos, feliz por receber atenção da irmã quando esta, saída do mar, sacudia sobre a sua barriga os cabelos molhados e salgados].

“Querido leitor, se chegaste até aqui talvez já me conheças o suficiente para poderes supor o quanto me custa interromper o curso da narrativa e dirigir-me a ti nestes termos; se o faço é apenas para que não restem dúvidas entre nós de que estes foram os instantes mais felizes que experimentei na vida, e que ainda hoje, passados trinta anos, sinto os pingos frios de água salgada a caírem sobre mim. E que mesmo na penumbra do quarto onde agora me encontro, oiço o barulho do fecho-éclair correndo ao longo das costas de Marta e vejo o seu corpo emergir, húmido, dourado pelo sol, de baixo do fato de neopreno – primeiro os ombros, os braços; depois os seios, a barriga, as ancas, as nádegas, as coxas. As pernas – uma harmonia perfeita de músculos e ossos, e sinto uma emoção tão grande, querido leitor, que me apetece gritar à praia inteira que ela é minha irmã!”

Beijinhos a todas,

Céu

Comentários