A vila que não quis uma livraria




Queridas Senhoras,

por causa do meu novo passatempo - as fichas de leitura - dei em releituras. O primeiro livro a que decidi regressar foi A Livraria, de Penelope Fitzgerald (e vou reler outro da mesma autora em breve, pelo mesmo motivo).

Quando o li pela primeira vez, talvez há uns dois anos, terminei-o a pensar que gostava de escrever um livro assim, um dia. O perigo é grande, agora que o reli percebo que tenho mesmo que me esforçar para não escrever um livro a-tentar-ser-um-livro-assim.

Passa-se numa vila costeira inglesa, nos anos 1950, e conta-nos o que acontece desde que a viúva Florence Green adquire uma propriedade antiga para nela abrir uma livraria, («Diz-se por aí que está prestes a abrir uma livraria. Isso demonstra que está preparada para enfrentar coisas imprevisíveis.»), até que parte: «Quando o comboio arrancou da estação, levava a cabeça pendida, pesarosa, porque a vila na qual vivera durante quase dez anos não quisera uma livraria.»

Por vários motivos, aquela terra não acolheu a novidade de braços abertos. Desde o procrastinador gerente do banco, ao desanimador advogado («O advogado explicou que os direitos de forma alguma eram afectados pela impossibilidade de serem colocados em prática.»), à senhora rica e influente que cobiça aquele espaço para um Centro de Artes (e que consegue que o seu sobrinho, político, aprove uma lei a favor da sua cobiça). Há também o pormenor de a Old House, morada da sua livraria e sua própria morada, estar assombrada por um poltergeist bastante insolente.

Depois, chega Lolita. Quando Florence decide, após aconselhar-se com o homem mais sábio (e menos visível) da vila, vender a obra de Nabokov na sua livraria, («É de facto um bom livro e, portanto, deveria tentar vendê-lo aos habitantes de Hardborough. Não irão compreendê-lo, mas melhor assim. Compreender torna a mente indolente.»),  a terra treme sob os seus pés e os seus sonhos começam a ruir: «Não se importou tanto quanto esperava. Era a derrota, mas a derrota é menos mal vinda quando se está cansado.»

Parece-vos mal que vos conte o final? Não é grave, não se trata propriamente de uma obra de suspense. A verdade é que começamos logo, desde as primeiras linhas, a duvidar do sucesso daquele empreendimento. E depois recostamo-nos, a ver desfilar personagens habilmente desenhadas, a ver desfilar o mundo tal como o conhecemos, com todos os seus vícios e caprichos, à espera de vermos, ao vivo, o acidente acontecer.

Falarei mais desta escritora numa próxima oportunidade, que foi uma descoberta magnífica e de quem ainda há muito por traduzir em português.

Beijinhos a todas,

Marta

Comentários

  1. [...] not see they had arrived at his friend’s home on the washday.» Com esta frase entramos em mais um livro de Penelope Fitzgerald sobre o qual vos falarei um dia, The Blue Flower. É uma das minhas releituras, mas desta vez à [...]

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  2. [...] Senhoras, em Novembro (o tempo passa, chiça) a Marta falou aqui de A Livraria de Penelope Fitzgerald. Como manifestei interesse (coisa nada rara quando se trata [...]

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  3. [...] São várias as passagens que poderia citar do livro A Baía dos Anjos de Anita Brookner que me chegou, sem pré-aviso, através da V..  Houve qualquer coisa nesta leitura, uma certa contenção no tom talvez, e também o facto de versar sobre a vida de mulheres, que me fez lembrar A Livraria de Penelope Fitzgerald, que li pouco antes, via Marta. [...]

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  4. [...] Memórias  (e aqui) Neuman, Andrés Orgulho Penelope Fitzgerald [...]

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