Queridas Senhoras,
qual é a vossa opinião sobre ler histórias demasiado assustadoras ou tristes às crianças? Por vezes, tenho receio de exagerar. Já aqui falei da obra Os Livros que Devoraram o Meu Pai de Afonso Cruz. Li-o logo assim que o comprei mas só agora estou a lê-lo com os miúdos (ok, o João adormece quase sempre mas faz parte).
A história conta uma viagem fantástica do protagonista, Elias Bonfim, por vários clássicos da literatura, com o propósito de saber o que aconteceu a seu pai, Vivaldo Bonfim. Ontem andámos pelo Crime e Castigo, o clássico de Dostoievski. (Curiosamente, li esse livro quase todo, não há muito tempo, mas depois, por qualquer coisa que se intrometeu, não cheguei a acabá-lo).
Resumindo o que interessa para prosseguir: depois de ter cometido um crime hediondo, Raskolnikov não consegue aguentar a culpa e acaba por se entregar para sofrer o merecido castigo, pensando que assim conseguirá aliviar a sua consciência. Depois da prisão na Sibéria, regressa aparentemente apaziguado e pronto para recomeçar uma vida limpa.
Mas no livro de Afonso Cruz a história não é bem assim. Raskolnikov cumpriu a sua pena mas não consegue atenuar o sentimento de culpa. Até que uma ideia macabra começa a tomar forma na sua mente: tornar o acto de matar banal para deixar de o sentir (como deixamos de sentir um mau cheiro depois de nos habituarmos a ele).
Da primeira vez que li o livro não me apercebi como esta parte podia ser aterradora e angustiante. (E há-de vir ainda outra, o protagonista vai ter que lidar com a culpa de ter provocado a morte do amigo.)
Os Livros que Devoraram o Meu Pai tem, ao mesmo tempo uma leveza, uma ironia subtil, um estilo cheio de alusões a diferentes géneros (“os meus olhos eram duas lascas de aço” é como Elias se auto-descreve quando assume o papel do investigador duro, batido, à maneira dos policiais negros) e a obras clássicas, que me entusiasmou por abrir o apetite e fazer a ligação entre várias obras de referência.
Fiquei com vontade de ler livros que vêm lá mencionados e que nunca li, como A Ilha do Dr. Moureau, ponto de partida da busca de Elias.
A questão é: estarei eu a “impor” à Alice livros demasiado complexos para a idade (quase 9 anos)?
Depois daquela terrível descrição sobre matar indiscriminadamente, aleatoriamente, é claro que ela perguntou assustada:
“E se o Raskolnikov existir?”
Beijinhos a todas,
Céu
Muito longe ainda desse patamar, já me debati com essa questão algumas vezes, com os contos clássicos. A questão coloca-se a todos os pais. Quando regressamos às histórias infantis que nos leram na infância, pensamos, eh pah, que violência, abrir a barriga do lobo e enchê-la de pedras? Comer criancinhas assadinhas no forno? Mas a verdade é que todos os especialistas destes assuntos da mente nos tranquilizam: é importante crescermos com imagens que nos permitam exteriorizar (e corporizar) os nossos medos mais profundos. É assim que aprendemos a distinguir o bem do mal e a construir as nossas defesas.
ResponderEliminarAcho que a pergunta da Alice é muito natural. Aqui o pior é termos, algum dia, que lhes explicar que existem mesmo Raskolnikovs. É demasiada realidade. Mas, ainda assim, é uma realidade mediada pela ficção, acredito que custe um pouco menos a digerir.
O Francisco acha que não existem super-maus porque não existem super-heróis para combatê-los. Lá na cabeça dele as coisas funcionam assim, por equilíbrios. Algum dia teremos que lhe explicar que a vida real é muito mais desequilibrada do que a ficção da Marvel...
Beijinhos
Marta
Pois, a minha dúvida é sempre quanto devemos explicar, até que ponto devemos ir. No caso do João, ainda não se aplica (ele próprio resolve a questão do Bem e do Mal dizendo que gosta de toda a gente menos dos "ladrões e das ladras"). Mas a Alice já sabe muito....
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