Queridas Senhoras,
começa este relato no final da manhã de ontem. Ouço uma conversa no corredor do prédio que me alerta e abro a porta. 'Sim', confirma a vizinha, 'fomos assaltados'. Chama-me para dentro de casa enquanto dois serralheiros consertam a fechadura e mostra-me como a porta do quarto foi partida em bocados. Levaram as jóias todas (deixaram as caixas vazias) e ainda duas malas de senhora, daquelas que custam um dinheirão. A minha vizinha estava de pijama e roupão, nunca eu a vira em tais trajes. Ficou em casa para fazer um apanhado dos estragos. Explica-me, num português cheio de mérito, que isto agora anda assim porque as pessoas não têm dinheiro. Ela e o marido são donos da gigantesca loja chinesa que ocupa o rés-do-chão do gigantesco prédio onde vivo e trabalham de manhã à noite, 365 dias por ano. Vêm a casa almoçar, por turnos, eles e os restantes funcionários da loja. Sabem, por isso, que foi entre as 14h e as 19h de segunda-feira que alguém abriu a porta de sua casa com uma chave de fendas e partiu a porta do quarto, que fica habitualmente trancada. Entre as 14h e as 19h de segunda-feira eu estava aqui mesmo, na porta ao lado, a trabalhar. Lembro-me de ter posto os headphones aí a meio da tarde porque há um cão novo no prédio que gane o dia inteiro.
Regresso a casa, chocada, e telefono ao Gonçalo para lhe contar tudo. Quando desligo, abro o Facebook e leio, 'Morreu Herberto Helder'. Como? Transfiro-me de um choque para outro, porque o segundo é imenso e não cabe mais nada em mim. Stop all the clocks, e isto é Auden, não é Herberto, mas, por favor, He Is Dead! Passo o resto do dia com a cara do poeta colada aos olhos, 23 de Março é a partir de agora o Dia da Paixão no meu calendário. Ainda agora morreu e já ressuscita de cada vez que alguém o lê, o lembra, o cita. Mas 23 de Março é o fim de uma era e estou tão triste que nem consigo entristecer-me com a queda de um avião nos Alpes. Evito a notícia porque não quero pensar em mais nada a não ser no deus que este mundo já não tem.
Quando anoitece, começa a balbúrdia nas casas que nos rodeiam. Até às onze e tal são os putos do 1º andar a cantar coisas medonhas como Scorpions, aos berros. Saem, que alívio. Mas eis que chegam os gajos da frente e estala a música africana, com graves que nos ressoam no peito. À meia-noite e meia vou tocar-lhes à campainha, desligam a música. Quando me deito, percebo que os putos do 2º andar chegaram a casa e estão a preparar-se para uma noitada de jogos de computador (basebol?). Berram que nem uns desalmados, eu dou saltos na cama mesmo com os tampões enfiados nos ouvidos. O Gonçalo acaba por ir dormir para a sala, dali a nada começa um dia longo e exigente e são duas e tal e ninguém dorme. Não, dorme o Francisco, felizmente tem o sono pesado, até custa a acreditar que ainda não tenha acordado. Eu vou fumar para a varanda, mas o Herberto Helder morreu e vocês estão a jogar basebol? Faz algum sentido estar este céu transparente, este ar limpo pelo vento, esta lua brilhante, se Ele já não os pode ver? Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Desço ao segundo andar, lembro-me do ladrão de segunda-feira, espero que não ande por aí, e toco à campaínha dos putos. Baixam o tom. Eu disse-lhes que oiço os home runs e os foda-se e que não estou mesmo nada interessada nisso. Não estou interessada em nada, hoje, mas não lhes disse isso, nem porquê. Volto para cima e trago Herberto nas pálpebras. Sonho com a notícia da sua morte, contada de todas as maneiras imagináveis. Acordo às 5h, com o regresso estridente dos putos do 1º andar. E outra vez às 7h, com o regresso histriónico dos gajos da frente. E ainda com Herberto, nos olhos, no coração, na palma da mão. Nos ouvidos, se um dia destes parar não sei se não morro logo.
Isto tudo junto, bem arrumadinho, com mais arte que cansaço, até dava um conto. Mas não hoje.
Se querem contos, subscrevam a maquineta Quem Conta um Conto e eles chegam-vos por email, quando menos esperam. Façam-no ainda hoje e recebem amanhã um conto meu, escrito depois de uma noite bem dormida, antes do assalto, antes do depois de Herberto.
Beijinhos a todas,
Marta
começa este relato no final da manhã de ontem. Ouço uma conversa no corredor do prédio que me alerta e abro a porta. 'Sim', confirma a vizinha, 'fomos assaltados'. Chama-me para dentro de casa enquanto dois serralheiros consertam a fechadura e mostra-me como a porta do quarto foi partida em bocados. Levaram as jóias todas (deixaram as caixas vazias) e ainda duas malas de senhora, daquelas que custam um dinheirão. A minha vizinha estava de pijama e roupão, nunca eu a vira em tais trajes. Ficou em casa para fazer um apanhado dos estragos. Explica-me, num português cheio de mérito, que isto agora anda assim porque as pessoas não têm dinheiro. Ela e o marido são donos da gigantesca loja chinesa que ocupa o rés-do-chão do gigantesco prédio onde vivo e trabalham de manhã à noite, 365 dias por ano. Vêm a casa almoçar, por turnos, eles e os restantes funcionários da loja. Sabem, por isso, que foi entre as 14h e as 19h de segunda-feira que alguém abriu a porta de sua casa com uma chave de fendas e partiu a porta do quarto, que fica habitualmente trancada. Entre as 14h e as 19h de segunda-feira eu estava aqui mesmo, na porta ao lado, a trabalhar. Lembro-me de ter posto os headphones aí a meio da tarde porque há um cão novo no prédio que gane o dia inteiro.
Regresso a casa, chocada, e telefono ao Gonçalo para lhe contar tudo. Quando desligo, abro o Facebook e leio, 'Morreu Herberto Helder'. Como? Transfiro-me de um choque para outro, porque o segundo é imenso e não cabe mais nada em mim. Stop all the clocks, e isto é Auden, não é Herberto, mas, por favor, He Is Dead! Passo o resto do dia com a cara do poeta colada aos olhos, 23 de Março é a partir de agora o Dia da Paixão no meu calendário. Ainda agora morreu e já ressuscita de cada vez que alguém o lê, o lembra, o cita. Mas 23 de Março é o fim de uma era e estou tão triste que nem consigo entristecer-me com a queda de um avião nos Alpes. Evito a notícia porque não quero pensar em mais nada a não ser no deus que este mundo já não tem.
Quando anoitece, começa a balbúrdia nas casas que nos rodeiam. Até às onze e tal são os putos do 1º andar a cantar coisas medonhas como Scorpions, aos berros. Saem, que alívio. Mas eis que chegam os gajos da frente e estala a música africana, com graves que nos ressoam no peito. À meia-noite e meia vou tocar-lhes à campainha, desligam a música. Quando me deito, percebo que os putos do 2º andar chegaram a casa e estão a preparar-se para uma noitada de jogos de computador (basebol?). Berram que nem uns desalmados, eu dou saltos na cama mesmo com os tampões enfiados nos ouvidos. O Gonçalo acaba por ir dormir para a sala, dali a nada começa um dia longo e exigente e são duas e tal e ninguém dorme. Não, dorme o Francisco, felizmente tem o sono pesado, até custa a acreditar que ainda não tenha acordado. Eu vou fumar para a varanda, mas o Herberto Helder morreu e vocês estão a jogar basebol? Faz algum sentido estar este céu transparente, este ar limpo pelo vento, esta lua brilhante, se Ele já não os pode ver? Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Desço ao segundo andar, lembro-me do ladrão de segunda-feira, espero que não ande por aí, e toco à campaínha dos putos. Baixam o tom. Eu disse-lhes que oiço os home runs e os foda-se e que não estou mesmo nada interessada nisso. Não estou interessada em nada, hoje, mas não lhes disse isso, nem porquê. Volto para cima e trago Herberto nas pálpebras. Sonho com a notícia da sua morte, contada de todas as maneiras imagináveis. Acordo às 5h, com o regresso estridente dos putos do 1º andar. E outra vez às 7h, com o regresso histriónico dos gajos da frente. E ainda com Herberto, nos olhos, no coração, na palma da mão. Nos ouvidos, se um dia destes parar não sei se não morro logo.
Isto tudo junto, bem arrumadinho, com mais arte que cansaço, até dava um conto. Mas não hoje.
Se querem contos, subscrevam a maquineta Quem Conta um Conto e eles chegam-vos por email, quando menos esperam. Façam-no ainda hoje e recebem amanhã um conto meu, escrito depois de uma noite bem dormida, antes do assalto, antes do depois de Herberto.
Beijinhos a todas,
Marta
Ó Marta, que suplício!!!!
ResponderEliminarComo te entendo, em tudo :(
Beijinhos
Caray! como se diz aqui no México. Estou estafada só de ler o texto. E mais, desde quando que fumas?
ResponderEliminarbjs