Queridas Senhoras,
conto-vos um pequeno episódio desta manhã. Na fila da caixa do supermercado uma senhora sentiu-se mal de repente e caiu redonda no chão. Estava quase na vez dela, não sei o que aconteceu, só vi a senhora no chão e o rapaz da caixa atrapalhado, sem saber se havia de continuar a registar as compras.
As pessoas definem-se muito através da maneira como reagem a estes imprevistos do quotidiano, não acham? A senhora que estava à minha frente tomou prontamente conta da situação, acercou-se da mulher caída, pediu que chamassem uma ambulância, que a virassem de lado, se havia alguém que soubesse prestar primeiros-socorros. Se havia açúcar (isso havia, estávamos no supermercado mas na confusão não é imediato).
A pessoa que estava nesse momento a pagar as compras só queria despachar-se e despachou-se. Apesar do inusitado da situação, uma mulher deitada mesmo à saída da caixa do supermercado, uma mulher sozinha, a precisar de ajuda, notava-se a ligeira irritação de quem via assim perturbada a sua vida com um incidente destes. As pessoas que estavam na fila da outra caixa certamente suspiraram de alívio por não ter sido na caixa delas. As mais curiosas acercaram-se não por preocupação mas por voyeurismo.
A empregada mais experiente da outra caixa alertou por fim o rapaz atrapalhado para que ele fechasse aquela caixa e passasse os clientes para outra. Mas ainda aconteceu estar gente a passar pela senhora caída, a pagar e a sair.
O comportamento exemplar, além da senhora com presença de espírito que agiu em primeiro lugar, foi o de outro empregado do supermercado. Eu já o conhecia de vista. É um moço zeloso que costuma andar em cima dos clientes, com simpatia mas firmeza, para ver se não abrem embalagens desnecessariamente, quando chegam as novas promoções, para ver se mantêm alguma decência enquanto consumidores e não desatam a espalhar plásticos, papéis e camisolas por tudo quanto é sítio.
Pois foi este jovem em quem eu já tinha notado uma preocupação pela decência que, mal se apercebeu do sucedido, não mais largou a senhora ali caída e exposta. Falou com ela, juntou-lhe os pertences, deu-lhe a mão e tanto quanto sei não terá arredado pé até à chegada da ambulância.
Há que ser decente.
Beijinhos a todas,
Céu
P.S. O episódio fez-me pensar nestas interrupções do quotidiano, muito frequentes nos transportes, sobretudo no metro.
Dentro de segundos
O metro de repente pára,
uma falha de energia, um suicídio
extemporâneo, há protestos,
cada um de acordo com sua classe
e feitio, há silêncio, as portas
abrem-se, ninguém sabe se vale a pena
sair ou se o comboio retomará a marcha
dentro de segundos, o nosso destino
demasiado longo para irmos a pé
as portas incomodamente abertas
dizem-nos que podemos sair ou não
de acordo com a nossa pressa ou paciência
comunidade desassossegada com o futuro
imediato e com termos que nos olhar,
cheiro e guarda-roupa e cabeçalhos
dos jornais e sacos de compras e gravatas
e unhas pintadas, cicatrizes, rugas,
decotes, as almas e os relógios de pulso.
Que venha rápida, a comodidade
urbana da rapidez e do alheamento.
Pedro Mexia in Menos por Menos
Querida Céu, este teu post mexeu muito comigo. Lembrou-me um episódio do género a que assisti, há vários anos, e que determinou o princípio do fim de uma relação que era muito importante na minha vida. Lembro-me como se fosse hoje e ainda hoje o meu coração se vira do avesso ao perceber que é tão fácil, mesmo para quem menos esperávamos, o alistamento na "comodidade urbana da rapidez e do alheamento".
ResponderEliminarBeijinhos
Marta