Os leitores falam às Senhoras: Daniel Melo (historiador)




Queridas Senhoras,

Daniel Melo é investigador integrado e vice-coordenador do grupo de investigação «Leitura e formas da escrita» do CHAM - Centro de Humanidades da FCSH.  Doutor em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE-IUL com a tese A leitura pública no Portugal contemporâneo, reconhecida com o Prémio de História Contemporânea Victor de Sá e publicada pela Imprensa de Ciências Sociais em 2004. É um dos promotores, com José Ribeiro e Assírio Bacelar, da Carta aberta para sair da crise no sector do livro e da leitura. É também um dos intervenientes do debate Porque fecham as livrarias?, que se realizou na Boutique da Cultura em Carnide,  a 15 de Maio, e vai ter continuação no próximo dia 9 de Junho, às 18h30, na Fábrica de Braço de Prata.


1. O que está a ler neste momento?

Leio quotidianamente um jornal diário de referência, desde jovem adolescente, vício e virtude de ter pai jornalista de imprensa a vida toda. Outros textos que costumo ler regularmente remetem para o meu trabalho de historiador, em especial artigos académicos, e vários de imprensa, como fonte para o estudo de testemunhos ou de reflexão e inspiração. Regularmente leio ainda para os meus filhos pequenos, o que muito me agrada (volta e meia pego em livros como o Poesia para a infância, belíssima antologia de Alice Gomes para a Ulisseia, em bom tempo adquirida na Pó dos Livros). Mais espaçadamente leio livros de poesia, contos, romances, ensaio, ciências sociais e humanas, além de jornais e revistas várias. E recortes, sou viciado em recortes, que vou lendo quando posso…

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Li O nariz, de Nikolai Gogol, na belíssima edição da Barca do Inferno. E, antes, muita poesia portuguesa dos anos 1960, para me inspirar e documentar enquanto escrevia sobre edição, alteridade e utopia nessa década. Agora, continuo a ler a poesia do Carlos Loures, por sua cortesia. Dele já li O arcano solar e O cárcere e o prado luminoso e gostei muito.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros.

Houve vários tipos de livros que me marcaram na infância. Os livros para crianças, com que contactei na Bélgica e que vieram para cá, com um grafismo e imaginário que ainda hoje recordo. Depois, tive a sorte de terem surgido bons manuais quando fiz a escola primária, após a revolução de 1974. Mesmo numa vila de província como aquela em que vivi quando puto havia livros interessantes em alfarrabistas, da bd corrente (brasileira, comics, franco-belga, Peanuts, etc.) à pseudo-erótica, o que entretinha a rapaziada. Outra memória que retive foi a dos livros da família, misturando Enid Blyton com a Bíblia, catecismos e coisas de que nem me lembro. E uns ‘livros’-carta que recebi de correspondência familiar e com os quais melhorei a leitura. Mais tarde, quando adoecia, o meu pai oferecia-me um livro de bd, do Astérix, do Lucky Luke ou do Tintim, o que retenho com gosto.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Tantos! As bd’s (franco-belga, anglo-saxónica, Hugo Pratt), as coleções Os sete e Uma aventura, o humor de Martins, Sempé, Plantu, Quino, Palomo e outros, o Papillon de Henry Charrière, Sinais de fogo, de Sena, Crónica de uma morte anunciada e Cem anos de solidão, de Gabi, O limite, de Maurice Sandoz (ilusts. de Dali), A náusea, de Sartre, Poesia lírica de Camões, Frei Luís de Sousa, de Garrett, a poesia de Bocage, Cesário Verde, Pessoa e António Ramos Rosa, entre outros.

5. Um local público onde goste de ler

Nalgumas bibliotecas e noutros espaços acolhedores. Na maioria dos cafés e esplanadas é actualmente uma missão espinhosa, dado o ruído permanente e a pressão mercantilista para o consumo e a alta rotação.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Depende do dia ou da hora: a mesa do escritório, o sofá da sala ou a cama.

7. Uma biblioteca importante para si

Há tantas, ainda, apesar do desinvestimento na bibliodiversidade (a propósito sugiro uma consulta à “Carta aberta para sair da crise no sector do livro e da leitura”) e a voga das bibliotecas como espaços para tudo menos para ler livros… Realço a British Library, pela riqueza do acervo, conforto e tranquilidade. A BNP e a portuense Almeida Garrett, pelo desafogo e singularidade. A Biblioteca Pública Municipal do Porto, um espaço monumental mas atento à comunidade. Destaco ainda a Biblioteca Municipal Camões, pela vontade de serviço à comunidade, pelo acolhimento nas tertúlias que organizei, pela vista magnífica sobre o Tejo, pelas mini-esculturas alusivas ao policial, pelo empenho cultural. Gosto também muito da Biblioteca de Arte da Gulbenkian e da municipal de São Lázaro.

8. As livrarias que costuma visitar.

Aquelas em que ‘tropeço’ no meu trajecto quotidiano são agora a Artes & Letras, a Colibri da FCSH e a Almedina (Saldanha e Gulbenkian). Mais espaçadamente, a Leituria, a Barata, a Eterno Retorno a Livr.ª Nunes e a das P-EA. Antes, também a Pó dos Livros. Ultimamente, tenho convivido muito na ex-Livrarte, actual livraria da associação cultural Espaço Ulmeiro, com o anfitrião José Ribeiro, o Assírio Bacelar e cúmplices próximos.

9. Uma editora de que goste particularmente

São tantas. A maioria das editoras independentes de sempre, da Portugália à Planeta Tangerina, passando pela Seara Nova, Sá da Costa, Cosmos, Guimarães, Livros de Portugal/ Dois Mundos, Ulisseia, CEI, Imbondeiro, Nova Realidade, Moraes, Centelha, Prelo, Presença, Livros Horizonte, Edições 70, Ulmeiro, & etc, Luiz Pacheco, Afrodite, Arcádia, Afrontamento, Artis, Estúdios Cor, Estampa, Inova, Teorema, Relógio d’Água, Fenda, Antígona, Hiena, Cotovia, Salamandra, Quatro Elementos Editores, Difel, Tinta-da-china, Orfeu Negro, Montag, etc, etc. A Romano Torres, pelo projecto que coordenei e que deu origem ao livro História e património da edição – a Romano Torres. A Minotauro de Bruno da Ponte e Jorge Tavares da Silva, pelo arrojo editorial e espírito cívico, e para lembrança da tenebrosa injustiça política e da resistência cultural. A PE-A, a Livros do Brasil, a D. Quixote, a Assírio & Alvim e a Caminho doutros tempos… Isto só para me ficar pelas fundadas por portugueses, e mesmo assim estou de certeza a esquecer-me de muitas…

10. Que livros gostaria de reler?

Certa bd e humor (parte já referida, mas a lista é extensa), também poesia (de Camões, Bocage, Pessoa, Sophia, Eugénio de Andrade, Ramos Rosa, F. Echeverría, José Gomes Ferreira, etc.), contos (p.e., o homónimo de Machado de Assis na LB, Ficções de Jorge Luís Borges e Biblioteca, de Zoran Zivkovic), algum ensaio, romance (p.e, Memórias póstumas de Brás Cubas) e teatro.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Ui. Espero ainda ter tempo para pensar nisso…

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Depende do local de leitura. Podem ser almofadas, mantas, suporte para o livro, mas, sobretudo, calma…

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Depende. Deixei de lado o Memorial do Convento e agora tenho pena (mas tinha lido sem pausas vários outros bons livros do autor, o que causa perplexidade: Que farei com este livro?Levantado do chão, O ano da morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a cegueira).

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Ui, tantas: jornais, revistas, livros, rádio, tv, internet, etc. Entre os ‘mensageiros’, realço Umberto Eco, Roger Chartier, Eduardo Prado Coelho, António Guerreiro, Carlos Loures, Manuel G. Simões, Margarida Calafate Ribeiro, António Pedro Ferreira, Osvaldo Silvestre, Carlos Reis, Carlos Jorge, e muitos outros.


15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

“No coração da neve

e no espaço

no silêncio e na infância

no amor na solidão na liberdade

na gentileza na fraternidade

o mesmo puro delírio

de iluminar as trevas

sem diminuir o sonho

e fazê-las cantar

à luz do dia”


(in António Ramos Rosa, Obra poética, Coimbra, Fora do Texto, 1989, vol. I, p. 29)





Beijinhos a todas,

Céu

Comentários