Ritual de passagem

 

Coraline-007

Queridas Senhoras,

ontem à noite tivemos uma sessão de cinema caseira em família. O filme, Coraline e a Porta Secreta, há muito que era falado cá em casa mas só o João o tinha visto. A Alice diz que é terror infantil e, como ela sublinha, é dos mesmos criadores do Paranorman e do Monstros das Caixas.

O filme é um pequeno prodígio, infinitamente superior a tantas patacoadas delicodoces ou tontas que se fazem para o público infantil. A estética, desde logo, é um primor a fazer lembrar Tim Burton. A premissa da história, essa, é das mais fascinantes de toda a ficção e do nosso imaginário em geral: a possibilidade da existência de um universo paralelo ao qual se acede através de um mecanismo de passagem - uma porta escondida, um alçapão, um espelho.

Coraline, uma menina que terá à volta de uns 10 anos, muda-se com os pais para um grande casarão misterioso ironicamente chamado palácio cor-de-rosa. Os pais não lhe dão muita atenção, ocupados que estão com os seus afazeres, repelindo muitas vezes as suas tentativas de aproximação de forma algo brusca (sim, reconhecemo-nos).

Em deambulações pela casa nova, Coraline descobre uma pequena porta escondida. Encontram a chave mas a porta está emparedada. Só que durante a noite… A onírica passagem irá conduzir a nossa heroína até um universo aparentemente em tudo igual ao seu - a mesma casa, os mesmos pais – só que em bom, em melhor.

Se no mundo real a mãe se mantém afastada do fogão (“o pai cozinha, eu limpo, tu sais do caminho” – e há que tirar o chapéu a esta simples e eficaz divisão de tarefas), a sua segunda mãe afadiga-se em redor dos tachos e Coraline, pouco habituada a mesas apetitosas, deixa-se deslumbrar pelos cozinhados fumegantes e pelos bolos enormes. Mas por pouco tempo.

Depressa Coraline percebe que a vida neste mundo superficialmente perfeito tem um preço muito alto. O símbolo desse preço são os olhos de botões. Os olhos foram removidos e botões foram cosidos em seu lugar. Ora se os olhos são o espelho da alma, não é difícil concluir que este é um mundo sem alma. Sem vida.

Além de um amigo humano (um rapaz que no mundo real fala um pouco de mais e no falso não tem voz), Coraline terá outro aliado inestimável que a ajudará a abrir os olhos. E a impedir que os mesmos sejam substituídos por botões. Esse aliado é um gato, pois claro. O omnisciente gato que aqui tem muito mais para oferecer do que um sorriso enigmático. Uma das minhas cenas preferidas é um passeio de Coraline com o gato até à fronteira do falso mundo. Para lá dessa fronteira não há nada, eles caminham no vazio. Tal como Truman quando chega ao limite do cenário em que viveu toda a sua controlada existência.

Como Alice, Coraline atravessa portas, passagens secretas, mundos comunicantes. E nesse périplo irá crescer. A porta secreta é também um ritual de passagem, uma despedida da infância. Porque o que imaginávamos ser um mundo perfeito pode afinal revelar-se uma prisão, um tédio, um círculo fechado, um beco sem saída. E as imperfeições, se calhar, são o melhor que temos.

Beijinhos a todas,

Céu

Comentários

  1. [...] cima os miúdos insistiam em jogar Monopólio. E não me sentia com coragem (muito menos depois da Coraline) para os abandonar por uma egoísta, longa e solitária sessão de [...]

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