As coisas que as mulheres me explicam

Queridas Senhoras,

outra vez domingo. Fim-de-semana prolongado fechados em casa e, ainda que amanhã seja dia de trabalho, o cenário não muda. Mais tempo em casa significa mais discussões, mas também mais conversas em família. E muitas vezes essas conversas passam pelos assuntos da actualidade, e muitas vezes pelo tema do machismo, violência contra as mulheres, ódio às mulheres. O meu marido diz "lá estás tu", mas não se furta ao debate. Os miúdos já se habituaram à troca de argumentos e também contribuem com a sua visão.

Não me canso deste tema, não só por ser necessário, importante, urgente, mas também porque ainda não deixei de me espantar por, durante tantos anos, ao longo do meu crescimento e até enquanto jovem adulta, não ter questionado uma série de coisas quanto ao papel e à visão da mulher na nossa sociedade. O quanto esse papel e essa visão estão submetidos ao ponto de vista masculino, às necessidades masculinas, àquilo que os homens esperam das mulheres. Enquanto crescia, não me lembro de ter questionado o estereótipo da mulher enquanto ser desejável, que procura estar no seu melhor para agradar aos homens, namorado, companheiro, marido. Naturalmente combinado com o papel seguinte, o de mãe, que apela a outras qualidades, mas prolonga e acentua a ideia de que a mulher tem de agradar, servir, cuidar.

A narrativa começa a formar-se praticamente desde o pré-escolar, com as brincadeiras entre meninos e meninas. É curioso observar que os meninos podem ter várias "namoradas", mas as meninas costumam reservar-se para um eleito. A adolescência é o culminar deste processo, com todas as questões do corpo e da imagem a assumirem uma importância desmedida. O ideal de beleza veiculado pela publicidade, pelas séries, pelas influencers, etc., continua a ser um ideal masculino. Poderão retorquir que esses meios impõem padrões de beleza para homens igualmente inatingíveis, com os seus músculos definidos e ausência de gordura. Certo. Mas a tolerância e a aceitação de corpos masculinos diversos é muito maior. Há muitas narrativas benignas sobre isto, o dad bod, a ideia de conforto e segurança associada à falta de definição muscular e que não implica falta de sedução. A visão sobre o equivalente feminino, o eventual mum bod, é muito distinta.

Chegados à meia-idade, os homens ganham o charme da experiência e do grisalho, as mulheres tornam-se progressivamente invisíveis. É aquela fase em que num filme podemos ver uma actriz a fazer de mãe de outra com apenas menos cinco ou dez anos. E em que é quase impossível encontrar um par amoroso na mesma faixa etária. Estes padrões são definidos por homens, porque a indústria é masculina, o poder é masculino, o desejo é masculino. Estas narrativas não são únicas, mas são hegemónicas. Por isso nos recordamos facilmente de filmes que moldaram o nosso imaginário enquanto adolescentes e veiculam determinadas imagens de mulheres, como Um Sonho de Mulher ou Instinto Fatal, mas temos de escavar para encontrar outros exemplos, outras narrativas.

E se hoje a diversidade narrativa é maior, o discurso corrente ainda está pejado de preconceitos e estereótipos. São as vozes que dizem "elas hoje ainda são piores do que eles", "ela também provocou", "foi assim vestida, estava à espera de quê?, "um homem não é de ferro", e por aí fora. Isto vem de onde? Onde aprendemos que se as mulheres se vestem de determinada forma é para atrair e provocar os homens? Quem nos ensinou que o homem não é capaz de controlar o desejo e que por isso é preciso ter cuidado e não dar sinais "errados"? 

Quando hoje a Cristina Ferreira recebe como insulto "tu nem um homem és capaz de arranjar", isto significa o quê? Que a validação da mulher ainda é determinada pelo desejo do homem? Não vales nada porque nenhum homem te quer? É assim que as meninas ainda estão a ser socializadas? A crescer com medo de não serem suficientemente bonitas, elegantes, desejáveis para o olhar do homem? A mover-se no frágil equilíbrio entre não serem pudicas nem putas?

Precisamos de outras narrativas. Elas existem, estão disponíveis, devem ser divulgadas, difundidas, discutidas. A literatura, o cinema, a música, as artes em geral, estão cheias de vozes alternativas, inspiradoras, que contam histórias diferentes, de mulheres que não dependem dos olhares masculinos, que não procuram agradar, servir, obedecer ao que os homens (pais, namorados, professores, chefes) esperam delas. Porque nas instâncias de poder ainda são os homens que predominam, continuam a impor padrões específicos para as mulheres. A recepcionista que deve apresentar-se maquilhada e de salto alto. A executiva demasiado agressiva. A jovem com namorados a mais. A mãe de família que não pode ter vida própria. A mulher de certa idade para quem o sexo já não é importante.

Mulheres de todas as áreas estão a contar histórias diferentes, a dar visibilidade a outras mulheres. É o que faz, por exemplo, a escritora Bernardine Evaristo, vencedora do Booker Prize, quando escolhe evidenciar obras escritas por mulheres negras. Ou Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura) com todo o seu trabalho em prol da diversidade. Amo estas mulheres.

Outro exemplo é o festival Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival a decorrer no Cinema São Jorge e na plataforma Filmin (até 10 de Dezembro). Gostei de uma descrição que li algures no Facebook: não são histórias sobre mulheres, são histórias contadas por mulheres. Os seus olhares, os seus pontos de vista, argumentos, realização. Há muitas histórias alternativas a serem contadas. Mas é preciso ir atrás delas, não nos caem no colo.

Até para a semana, 

Céu

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