Minhas muito queridas Senhoras,
outra vez domingo. Ontem escapuli-me e fui ao cinema, ainda sem saber o que aí vinha. Em boa hora o fiz, pois não creio que surgissem mais oportunidades de assistir ao belíssimo Donzela Guerreira de Marta Pessoa (exibe-se apenas em três cinemas, City Alvalade, em Lisboa, Leiria e Setúbal).
Estreado o ano passado no Indie Lisboa, a sinopse reza assim:
Emília é uma escritora, a viver em Lisboa no ano de 1959. Ela é a “Donzela Guerreira”, uma mulher ficcional composta a partir dos universos literários de Maria Judite de Carvalho e Irene Lisboa, escritoras da cidade e das personagens que nela habitam. Guiados pela voz e olhar de Emília, entramos num jogo entre as imagens de arquivo da cidade e a pura efabulação. É uma Lisboa de ruas, jardins e casas onde habitam mulheres que olham para si próprias e umas para as outras, que ocupam os lugares que lhes destinam e o silêncio a que as votam. A história de uma mulher que vai à luta.
Senti-me em casa. Reencontrei a Maria Judite de Carvalho com quem estabeleci uma relação de grande proximidade, e também Irene Lisboa, que fiquei a conhecer melhor no curso Mulheres Raras da Rosa Azevedo (atenção, há uma nova edição a começar a 18 de Novembro).
Tudo me atrai no filme, é o universo dos contos e crónicas da Maria Judite, é o meu universo. As vagas angústias, os pequenos tédios, a súbita felicidade pela tomada de consciência da liberdade, os passeios pela cidade, os edifícios, os jardins, a observação incessante do quotidiano. As pequenas desilusões à medida que a cidade muda, uma estátua que nos habituámos a ver e não está lá, um cinema que fecha, uma fachada que desaparece.
Na entrevista deste Sábado ao Expresso, Miguel Esteves Cardoso diz que os escritores não escrevem senão sobre si próprios, mesmo que não pareça. E será que nós, leitores, não lemos senão sobre nós mesmos? «Temos de nos agarrar ao universal», diz o MEC. Donzela Guerreira descreve as vivências de uma mulher sozinha e independente na Lisboa dos anos 50, com base nos textos literários de Maria Judite Carvalho e Irene Lisboa, e é absolutamente universal. As observações sobre as mulheres sem aliança, as mãos das mulheres que atendem nos guichets, as mulheres casadas com casas, roupa, marido e filhos irrepreensíveis, as mulheres sozinhas, mas senhoras de si, com horas para gastar depois do expediente. As expectativas, imposições, restrições, preconceitos que (ainda) impendem sobre as mulheres. E a liberdade, sempre, acima da solidão, acima de tudo.
Que pena, que pena não encontrar, para aqui transcrever, o excerto final que me emocionou até às lágrimas. Fica o início dessa passagem, a parte que está disponível no trailer.
«Há dias sem Sol nem chuva. Tenho reparado muito neles. Lisboa tem muitos dias assim, em que a cidade não é triste nem alegre e tudo parece mais silencioso. Um dia perfeito, em que a vida parece um pensamento.»
Até para a semana,
Céu
"Há dias sem sol nem chuva. Tenho reparado muito neles. São luminosos, mas não têm sombras e as pessoas ganham uma substância estranha, como modelos numa maquete de arquitectura. Lisboa tem muitos dias assim, em que a cidade não é triste nem alegre e tudo parece mais silencioso, como hoje. As coisas perdem distâncias e ganham semelhanças. Um dia perfeito, em que a vida parece um pensamento. Vou pelo passeio e encontro caras conhecidas em rostos de gente que nunca vi. E sinto uma grande ternura pelos edifícios e pelas ruas. Ternura porque os conheço, porque sou deles e eles são meus. Não sei que seria de mim noutra cidade. Aqui não me canso de andar. Muitas vezes tenho vindo dar ao Terreiro do Paço. Gosto de olhar a cidade, mas faço-o com discrição. Viro-lhe as costas e fico a observá-la no meu espelho de toilette. Afinal, sou uma senhora. E ela, que linda que é!" | É sempre gratificante quando um filme encontra um espectador ideal. Deixo-lhe aqui o excerto de que fala. :)
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