Para onde foi o guarda-chuva?

Queridas Senhoras,

outra vez domingo. Dia de crónica 'Levante-se o réu' de Rui Cardoso Martins na Notícias Magazine. Não vou falar da crónica de hoje, mas sim da de Domingo passado, «Anjos dos perdidos (e achados)». Um breve resumo: o autor perdeu o telemóvel que foi encontrado por Wanderson, um jovem brasileiro que trabalha nas obras, a quem deviam dar jeito os 100 euros que lhe ofereceram pelo telefone logo ali. Mas ele decidiu aguardar pelo telefonema do dono e assim se tornou protagonista de uma crónica exemplar que irá provavelmente parar a um livro. O autor recupera o telefone, saca uma crónica de antologia, os leitores exultam, Wanderson ganha a imortalidade. Ainda assim, talvez os 100 euros talvez tivessem dado mais jeito, não consta que a imortalidade pague as contas. Wanderson recusou dinheiro de recompensa, mas aceitou um livro assinado. No Brasil, fazia teatro. 

Se pensam que a história acaba aqui, preparem-se. Além desta lição de vida oferecida de bandeja na última página de uma revista de Domingo (por 1,70 €, é de graça), o texto traz a melhor descrição de um guarda-chuva que já li. O guarda-chuva que o autor um dia encontrou, e devolveu, porque a história de que "achado não é roubado" é, além de uma chico-espertice saloia, ilegal. Confiem, que RCM anda há mais de 20 anos pelos tribunais e não nos ia mentir. Aliás, o autor não mente, excepto mentiras inocentes, a bem da crónica, isso aceito, daí que não me importe se este guarda-chuva não existir. Transcrevo:

Pendurado no caixote de lixo dos recibos de conta, estava o melhor guarda-chuva que tive na mão. Que me deu a honra de o ter na mão. A capa era de seda natural, com reflexos verdes e castanhos, era um guarda-chuva com gabardina só para si. O cabo, grosso e suave, de madeira dourada, cheirava a trópicos doces por baixo do verniz. Lá dentro, uma extraordinária estrutura de metais nobres estava pronta a abrir em cúpula, com a elegância com que as flores abrem para receber o orvalho da manhã.

Esta passagem fez-me lembrar um exercício, típico de um curso de escrita criativa, que infelizmente não consegui desenvolver, mas hei-de tentar: descreva literariamente um objecto do quotidiano.

Na mesma revista li um artigo que quero para aqui chamar, ainda a propósito do texto da semana passada, e desculpem se falta elegância a esta transição, intitulado «A meritocracia existe?». Há vários estudos que indicam que o sucesso depende de factores aleatórios, como a sorte, e outros menos aleatórios como a família de onde se vem e as pessoas que se conhecem. O determinismo social tem ainda um peso enorme. E isso é prejudicial para todos. Simplificando, se todos tivermos melhores oportunidades, o bem geral aumenta. Se só uma minoria tiver oportunidades, as coisas ficam mais difíceis, inclusive para essa minoria. Que fazer, então? Bem, acho que tentar fazer sempre a coisa certa, como o Wanderson, ajuda. RCM também fez a coisa certa ao devolver o belo guarda-chuva. O dono deve ter ficado sensibilizado e talvez tenha sido correcto e generoso para alguém que precisava de uma oportunidade. Fazer a coisa certa. É mais ou menos isso que diz o Dino D'Santiago nesta entrevista, e reparem como fiz nova transição e estou quase a conseguir incluir tudo o que queria dizer hoje. A entrevista faz parte do novo videocast do Diogo Faro, «Desta Para Melhor». Ouçam também as conversas com a Capicua e a Rita Blanco

Pronto, até para a semana.

Céu

Nota: inspirado não é plagiado, mas aqui fica a referência: o título desta crónica vem do livro de Afonso Cruz Para onde vão os guarda-chuvas? (ed. Companhia das Letras).

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