Repetição

Queridas Senhoras,

outra vez domingo. Na semana que passou, por coincidência, duas pessoas que admiro falaram de repetição, algo que valorizo muito. Achei que talvez fosse um sinal e poderia escrever sobre isso. Na crónica do Expresso («Lidar com a repetição», 7/11), Tolentino Mendonça fala de «uma categoria com a qual nos precisamos de reconciliar e da qual temos muito a aprender». Cita o filósofo dinamarquês Kierkegaard para quem «a repetição é a chave que explica a nossa existência», não como mero retorno do passado, mas como a possibilidade de alcançar novos estádios de aperfeiçoamento e progresso.

Na entrevista a Inês Meneses, Miguel Esteves Cardoso fala do «ódio à novidade», que vem de acontecerem coisas más, principalmente à medida que envelhecemos, como doenças, acidentes (ou pandemias). Quando esse tipo de coisas acontece, tudo o que se deseja é a repetição absoluta e infalível dos dias bons. Acordar bem-disposto, ver a manhã, pensar o que vai ser o almoço, almoçar (grande ênfase neste tópico). Fazer sempre a mesma coisa, sempre a mesma maravilha. Um dia bom, para o MEC, é desejar que o dia seguinte seja exactamente igual ao que passou.

Não sei se tenho um problema, mas fico muito mais descansada depois de ouvir o MEC. É que acontece-me muitas vezes ter saudades dos dias que passaram. Não apenas dos dias longínquos, mas um dia do mês passado, quando fomos passear, ou até da semana anterior, porque estava um tempo maravilhoso, o ar cheirava bem, e pode não voltar a ser assim. Porque o clima não se repete e as outras condições também não. Alguém pode adoecer, alguém vai ter uma chatice qualquer e por isso não vai estar tão descontraído como daquela vez.

O mais parecido que descobri com o segredo da felicidade é fazer exactamente as mesmas coisas, da mesma maneira, tentando repetir momentos perfeitos. É mais difícil quando envolve outras pessoas porque não controlamos como os outros se sentem e agem. É mais fácil quando depende só de nós e das condições físicas. Por isso custa-me tanto perder uma manhã luminosa, e não gosto de noitadas por causa disso, porque me fazem perder as manhãs.

O quotidiano e as rotinas estruturam os meus dias e sem isso sinto-me perdida. Este ano fui fazendo sucessivos ajustes à rotina, conforme as regras e as limitações em vigor, porque sei que isso é imprescindível para funcionar. Ao ler esta semana um livro recomendado pelo clube de poesia que a minha filha começou a frequentar (Cartas a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke), uma passagem teve especial ressonância. Não escrevo poesia, mas preciso de inspiração diária no meu quotidiano. Essa inspiração vem maioritariamente dos passeios a pé. Isso é primordial.

«Se o seu dia-a-dia lhe parecer pobre, não o acuse de pobreza; acuse-se a si próprio, reconheça que não é ainda poeta o bastante para conseguir invocar as suas riquezas; pois para um criador não há pobreza e nenhum lugar é indiferente e pobre.»

Na entrevista do MEC, ouve-se um sino a tocar em fundo. É um som de tal forma reconfortante, e o MEC fala com tal alegria e entusiasmo, que o meu desejo é que ele continue a dizer exactamente as mesmas coisas pelo menos durante mais 30 anos. Sentir que ele está lá, a ler e a escrever, enquanto as horas passam (todas as horas são interessantes) e o clima muda súbita ou imperceptivelmente, é uma repetição maravilhosa que nós, seus leitores e admiradores, nunca estaremos preparados para perder.

Até para a semana,

Céu


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