A primeira pessoa que amamos

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Queridas Senhoras,

saiu novo volume da lindíssima Colecção de Poesia da Tinta da China, coordenada por Pedro Mexia. Alguma coisa negro, de Jacques Roubau, escritor e matemático francês. [O erro de concordância no título é propositado. Alguma coisa negro e não Alguma coisa negra. ]

O nome do autor nada me diz, desconheço a temática do livro. PM é o editor, José Mário Silva o tradutor, Gonçalo M. Tavares assina o prefácio. Este trio junta-se na Nouvelle Librairie Française para o lançamento. Eu, que sou cusca, trabalho perto e não resisto a uma sessão deste gabarito e com estas sumidades, vou lá espreitar.

Alguma coisa negro é o diário de um viúvo. Começou a ser escrito trinta meses após a morte da mulher [a fotógrafa Alix Cléo Roubaud, falecida com apenas 31 anos]. Porque durante trinta meses emudeceu.

Diante da tua morte eu fiquei completamente silencioso. // Não consegui falar
durante quase trinta meses

Do muito que foi dito durante a sessão, guardei sobretudo esta ideia de GMT: a verdadeira memória só nasce quando morre a primeira pessoa que amamos. Ele chamou-lhe memória humana. É como se antes existisse apenas uma memória técnica, prática, útil. Só após a morte da primeira pessoa que amamos desenvolvemos a memória humana, necessária para a recordar e construir dentro de nós.

A história não tem recordações.

Cada imagem de ti – falo daquelas que estão nas minhas mãos, diante dos meus olhos, nos papéis – cada imagem toca o rasto de um reconhecimento, ilumina-o,
Mas no entanto ela acabou, elas acabaram, cada uma e todas, não constituem nas suas configurações nenhuma vida, nenhum sentido, nenhuma lição, nenhum objectivo.
A tua voz deslocando-se ao murmurar no gravador, oiço os esforços do teu fôlego, na noite, diante do gravador na tua cama.
Escuto-a, igual, depois de centenas de noites, e no entanto não há nada nela de um presente, nada que a magia mecânica tenha conseguido, através da mimese em limalhas, transmitir de nenhum dos teus momentos, plenos, separados, de fôlego difícil, terminados, para estarem aqui em teu nome, como um recurso.
E é por isso, talvez, que estás nelas, vista, e voz, o mais irremediavelmente possível, morta.
E é por isso, também, que a vida que te resta, se ela te resta, ficou impressa em mim, como um sudário, confundida comigo, recusando desfazer-se.
E ceder, como a tua carne, à consentida decomposição não imaginável, imobilizar-se como a imagem e a palavra nos parêntesis documentais. Esta vida que é isto:
O teu cheiro, o teu gosto, o toque de ti.

Jacques Roubaud
(in "Alguma coisa negro", Tinta da China, trad. de JMS)

 

Beijinhos a todas,

Céu

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