O exíguo cubículo de si mesmo

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Queridas Senhoras,
a S. fez um comentário curioso sobre A Noite da Iguana a que assistimos ontem no S. Luiz. “É tão perfeito que parece cinema, não é?”. Adianto, como referência, que a S. assistiu a todas as peças anteriores do ciclo Tennessee Williams dos Artistas Unidos (Gata em Telhado de Zinco Quente, Doce Pássaro da JuventudeJardim Zoológico de Vidro) e garante que esta é a melhor. É uma recomendação mais valiosa do que tudo o que eu possa dizer aqui pois a S. é a pessoa a quem telefono para saber se um filme ou uma peça valem a pena. Tem sempre razão e raramente se engana.

Quanto ao comentário dela sobre a perfeição cinematográfica, é mesmo curioso. Há filmes dos quais dizemos que parecem teatro. E normalmente gosto de filmes desse género, muito centrados no texto e nos diálogos. Por isso, entendo o que a S. quer dizer, mas não faria essa comparação. Tão perfeito, tão próximo, tão real, tão vivo, só o teatro mesmo.

A magia do teatro ganha ainda maior dimensão numa época em que tudo é visto, lido e ouvido através de ecrãs, em pequenos vídeos, parágrafos curtos, shots de informação ou ficção. O teatro exige um esforço e uma atenção que já não se usam. Os actores constroem a magia noite após noite com os próprios corpos, a própria voz, tudo sem filtros. Num mundo em que tudo nos chega cada vez mais através de filtros e mediado por algoritmos, a experiência crua e nua do palco ganha ainda mais força e sentido.

O que se pede ao público é também exigente. Dirijam-se a este local, às tantas horas, compareçam a tempo e estejam preparados para duas ou três horas de atenção plena. Para assistir à interpretação de textos muitas vezes complexos, com referências nem sempre evidentes, escritos em épocas e contextos distantes do nosso. O teatro pede-nos disponibilidade física, mental, emocional, tudo ao mesmo tempo.

A Noite da Iguana não é uma peça difícil, nesse sentido. Pouco depois da subida do pano, já estamos imersos no ambiente de languidez e lassidão, ligeiramente devasso, do pequeno hotel na costa mexicana gerido por Maxine, uma viúva recente com desejos. O alvo do desejo é Shannon, ex-padre transformado em guia turístico de senhoras, um alcoólico viciado na angústia e em jovenzinhas menores.

A esta dupla junta-se outra, tão improvável como doce: uma neta e um avô que viajam pelo mundo como artistas ambulantes, ganhando a vida em hotéis. Ela está à beira dos 40, faz aguarelas e caricaturas. Ele tem quase um século e é “o último poeta vivo ainda no activo.”

O que acontece? Quase nada, de facto. Todos buscam companhia, como dizia a canção. Shannon vem à procura de salvação e redenção. Maxine quer alguém que a ajude a gerir o hotel e o desejo. O avô quer criar um último poema. Hannah quer acompanhar o avó até ao fim e depois continuar.

Por vezes, cada um consegue “escapar do exíguo cubículo de si mesmo” e chegar ao outro. Compreendê-lo, ajudá-lo, libertá-lo.

Há uma iguana presa por uma corda que se arrasta debaixo da casa. Quer libertar-se nem que isso a mate.

Beijinhos a todas,

Céu

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