Os leitores falam às Senhoras: José António Gomes (professor e escritor)



Queridas Senhoras,

o nosso convidado de hoje é um especialista em Literatura para a Infância e Juventude. Doutorado em Literatura Portuguesa do Século XX pela Universidade Nova de Lisboa, José António Gomes é professor coordenador na Escola Superior de Educação do Porto. É autor de várias obras e antologias (nomeadamente Para uma História da Literatura Portuguesa para a Infância e Juventude, IPLB / MC, 1998) e dirige a revista Malasartes - Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude. Sob o pseudónimo literário de João Pedro Mésseder, tem também uma extensa produção com várias obras premiadas.


1. O que está a ler neste momento?

Leio O Livro dos Abraços (Antígona, 2018), do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015): contos breves, microcontos, testemunhos, apontamentos autobiográficos... São textos belos, surpreendentes, poéticos (não raro bem humorados), suscitam reflexão sobre questões individuais, sociais, políticas… Alguns assemelham-se a poemas em prosa. O próprio escritor os ilustrou com sugestivas colagens. Leio também Possibles futurs (Gallimard, 1996), do grande poeta francês, que sempre me acompanha, Eugène Guillevic (1907-1997).

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Reli A Casa Grande de Romarigães (Bertrand), de Aquilino Ribeiro, um dos cinco ou seis maiores romances portugueses do século XX, e li Das Rosas (Licorne, 2018), de Rainer Maria Rilke. A seguir, talvez (re)leia a obra completa de Rimbaud (incluindo correspondência), que está para sair – em edição bilingue, creio – na Relógio d’Água.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros.

Conto a mais remota. Lembro-me de os livros sempre terem despertado a minha curiosidade, mas, aí por volta dos quatro-cinco anos, comecei a receber e a pedir as pequenas revistas de banda desenhada das produções Walt Disney: Mickey, Pato Donald, Zé Carioca… No entanto, só conseguia ler as imagens (embora conhecesse bem o abc e soubesse escrever o meu nome e os de outras pessoas). As revistas foram-se acumulando e a vontade de ler as palavras ia aumentando. Quando finalmente aprendi a ler, creio que num mês – estava no primeiro ano da escola primária –, sabia que tinha em casa um “tesouro” ao qual podia regressar, redescobrindo tudo, isto é, lendo as palavras e relendo as imagens. Uma festa. Como se, de repente, tivesse à minha disposição todo o “tesouro”, pela primeira vez.
Conto outra memória: foi quando descobri que, na minha relação com a praia e o mar, eu era um pouco como aquele rapazinho, personagem de A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen. O trecho de abertura (um verdadeiro poema em prosa) recordo-me bem de o ler, vezes sem conta, no livro de Português, quando tinha 10 anos.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Várias biografias, como as de Mark Twain ou Lincoln ou Buffalo Bill. Mas isso, talvez, até aos 12 anos. Porque, a partir dos 13, passei a considerar-me (coitado de mim) um jovem adulto, que se interessava pela música, pelas artes em geral e pelo lastimável estado do mundo. Daí que tenha começado a ler livros que achava serem já de adulto, como os romances e contos completos de Júlio Dinis (e o meu favorito, porque foi o primeiro, passou a ser Uma Família Inglesa). Também A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, Amor de Perdição, de Camilo, e os dois primeiros livros de poesia que comprei por iniciativa própria, com dinheiro das minhas semanadas: Filho do Homem, de José Régio, e Poemas de Alberto Caeiro, do Pessoa. Ah, e comecei a copiar, para poder reler, letras de Bob Dylan, de José Afonso, de Adriano Correia de Oliveira… Pessoa interessou-me tanto, entre os 14 e os 16 anos (sobretudo Caeiro, Álvaro de Campos e o ortónimo), que fui ler Vida e Obra de Fernando Pessoa, do João Gaspar Simões – na altura, achei-o um livro cheio de revelações. Em simultâneo, comecei a interessar-me por alguns poetas e romancistas norte-americanos (o velho Poe, mas também Ferlinghetti, Ginsberg, Steinbeck, Caldwell, Hemingway…). E assim que me vi em Paris, pela primeira vez (com 16 ou 17 anos, creio), e descobri a Shakespeare and Company, tratei logo de juntar o maior número de livros de poesia beat que a minha magra bolsa me permitia comprar.

5. Um local público onde goste de ler.

Com o mar em frente. Ou em certos locais, no campo. Mas é mais habitual, nesses lugares, observar e ouvir. E às vezes escrever. Mais do que ler.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa).

A cama. E um certo sofá, no meu escritório.

7. Uma biblioteca importante para si.

A da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Nova de Lisboa. E, na juventude, a pequenina biblioteca pública Pedro Ivo, no Porto, na bela Praça Marquês de Pombal. Nesta, li imensos romances policiais e biografias, entre os 14 e os 16 anos. Foi desactivada definitivamente por Rui Rio, quando o Porto teve a infelicidade de o ter como autarca (um verdadeiro terminator de tudo o que cheirasse a cultura).

8. As livrarias que costuma visitar.

Visito quase todas as livrarias que encontro no caminho. Mas habitualmente, no Porto, frequento a Poetria, a Unicepe, a IN-CM, a Latina, a Lumière (uma livraria de livro antigo e em segunda mão, que muito aprecio) – além dos espaços mais mainstream dos grandes grupos de distribuição/comercialização (mas nestes, quase nunca sou surpreendido, é uma verdadeira tristeza; nem os considero bem livrarias). Aliás, ainda estou na fase de luto pelo fecho da Leitura, a super-livraria da minha juventude.
Algumas das livrarias parisienses correspondem ao meu ideal de livraria – bem mais do que as inglesas, as espanholas ou as italianas. Mas sou igualmente fã da Follas Novas, em Santiago de Compostela, cidade que visito muitas vezes por razões académicas.

9. Uma editora de que goste particularmente.

Relógio d’Água. E Caminho, que edita os meus livros literários, os que assino com o nom de plume João Pedro Mésseder. Também gosto da micro-editora Xerefé, da minha amiga Ana Biscaia.

10. Que livros gostaria de reler?

Assim de rajada, e sem ordem pré-determinada, alguns que me vêm à memória: Madame Bovary e os Três Contos, de Flaubert. Marca de Água, de Brodsky. On the Road, de Kerouac. Winnie-the-Pooh, de A. A. Milne. Huckleberry Finn, de Mark Twain. Do Cancioneiro de Amigo, de Stephen Reckert e Helder Macedo. Seis Propostas para o Próximo Milénio, de Italo Calvino. Uma Arte de Música e Outros Ensaios, de Óscar Lopes. Sapato de Fogo e Sandália de Vento, de Ursula Wölfel. O Malhadinhas e Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro. Viagens na Minha Terra, de Garrett, e Prosas Bárbaras, de Eça (que li no fim da adolescência e gramei à brava). A Poesia como Arte Insurgente, de Ferlinghetti. O Manifesto de Marx e Engels. A Arte de Viver para as Novas Gerações, de Vaneigem. Macbeth, de Shakespeare. Do lado de Swann, de Proust. As Vinhas da Ira, de Steinbeck. Sinais de Fogo, de Sena. Da Rosa Fixa, de Maria Velho da Costa. A-Ver-o-Mar, de Luísa Dacosta. A Praça de Liège, de António Rebordão Navarro. Todos os romances e toda a poesia de Carlos de Oliveira. A obra completa de Sophia. Toda a poesia de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade. Todos os livros de Mário Quintana… O Guimarães Rosa… O Brecht… O Paul Celan… O turco Nazim Hikmet e o palestino Mahmoud Darwish. A Safo e o Heraclito. O Pessoa e C.ª heteronímica e semi-heteronímica…

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

É coisa em que não penso. Até porque não sei se terei vista suficiente para continuar a ler. E como não tenho uma Maria Kodama que leia para mim em voz alta…

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Óculos, lápis, papel para tirar notas (que também pode servir de marcador)… Às vezes música. Às vezes uma gata por companhia. Ou duas. Ou três.

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Depende. Se o livro não prende por ser demasiado bom para a minha competência leitora, insisto – porque o livro merece e o defeito é meu. (Aliás, gosto de textos que ofereçam resistência à leitura.) Se não prende porque é medíocre, ponho de lado (quando posso, porque na verdade também leio muita coisa medíocre até ao fim, por dever de ofício).

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Sim, leio muito sobre livros, mas cada vez menos a chamada “imprensa cultural” de quiosque ou as secções ditas de cultura dos jornais, que mais me parecem um misto de Gente ou de Caras da área da cultura, vivendo do efémero. O que leio sobre livros é em obras de tipo ensaístico. Para mim há ensaístas que valem não sei quantos poetas e romancistas. Estes arriscam-se a ficar esquecidos, enquanto aqueles continuam a ser lidos. Quando penso em nomes como o Pessoa ensaísta e crítico, ou como Benjamin, Jakobson, Genette, Barthes, Paul de Man, Óscar Lopes, António José Saraiva, Maria Helena da Rocha Pereira, o Calvino ensaísta, o Manuel Gusmão ensaísta, João Barrento, Clara Rocha e outros de que me estou a esquecer…, faltam-me palavras para dizer o quanto aprendo com eles e o prazer que, por vezes, a leitura dos seus textos críticos me proporcionou.

15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

«Senhora, partem tão tristes / Meus olhos por vós meu bem, / Que nunca tão tristes vistes / Outros nenhuns por ninguém (…) / Partem tão tristes os tristes, / Tão fora de esperar bem, / Que nunca tão tristes vistes / Outros nenhuns por ninguém.» (João Roiz de Castel-Branco (n. 14?? – m. 1515?).




(Quanta riqueza nestas respostas! De entre várias referências importantes para mim, destaco esta: Huckleberry Finn, de Mark Twain é o livro que comecei a ler ontem com os meus filhos. Temos poucas noites para ler juntos agora, mas espero que o jovem Huck nos faça boa companhia ao longo das próximas semanas.)


Beijinhos a todas,

Céu

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