Os leitores falam às Senhoras: Manuel S. Fonseca (Guerra & Paz)


Crédito da imagem: Neusa Ayres

Queridas Senhoras,

deixem-me começar por isto: «O meu maior medo é que a morte seja tudo às escuras sem se poder ler. Pouco interessa deixar de ser humano, desde que não deixe de ser leitor. Ler é do mais feliz que tenho. Até porque escrever é triste.» É o texto que Manuel S. Fonseca escolheu para se apresentar no blogue colectivo Escrever é triste, um dos lugares onde podemos acompanhá-lo com regularidade. Outro é a coluna semanal na revista do Expresso, «O Cinema Dá o Que a Vida Tira». Leio esta coluna há muito tempo, pela volúpia da prosa e pela esperança de expandir a minha cultura cinematográfica. Embora este último factor seja secundário. A cultura ampla, vasta, generosa, não é coisa que apareça assim por cálculo ou algoritmo. Manuel S. Fonseca, editor da Guerra & Paz, tem o dom. Não cabe aqui dizer tudo mas acrescentamos que tem livros publicados (Francis Ford Coppola, edição Cinemateca e Gulbenkian, Revolução de Outubro, Pequeno Dicionário Caluanda, Guerra & Paz) e que alimenta ainda outra coluna, na revista Epicur, intitulada «Disseram-me que Davam Bolos».

1. O que está a ler neste momento?

Estou a ler, por obrigação profissional e por gosto a Economia do Bem Comum, um livro de Jean Tirole, Prémio Nobel da Economia, que vou publicar já no dia 15 de Maio. Uma lição: só há serviço aos outros onde há pensamento e inteligência. Mas no fim de semana comecei também a ler, de um americano de ascendência russa, Yuri Slezkine, um livro monumental, de 1290 páginas, que se há-de vir a chamar, se for um dia traduzido para português, A Casa do Governo, A Saga da Revolução Russa. Um livro prodigioso sobre um fenómeno criado por Estaline. Estão a ver o edifício das Amoreiras? Bom, ele mandou fazer uma construção monumental desse tipo: 505 apartamentos, para as famílias bolcheviques no poder, com biblioteca, refeitório, teatro, courts de ténis, correios. Estava ali a elite e estava ali o modo de vida quotidiano comunista. Ali se beijava a boca comunista da glória e ali se caía em desgraça e se era preso por traição. Que inveja raivosa Shakespeare teria deste teatro vivo de sangue, tortura e lágrimas que faz de Hamlet e Macbeth meninos de coro.

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Li antes uma biografia de Louis B. Mayer, Merchant of Dreams, de Charles Higham, e vou ler agora, de Alain Tapié, Vanité, Mort Que Me Veux-Tu?, um livro-catálogo, lindíssimo, que acompanhou, em 2010, a exposição homónima da Fundação Bergé-Yves St. Laurent. É das Éditions de la Martinière, que tem a ousadia de editar certos livros na linha das edições de luxo da minha Guerra e Paz editores, mas com dinheiro à séria.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

Li um livro de Zane Gray, Ouro do Deserto, julgo, que metia uma misteriosa, doce e tensa mulher mexicana chamada Mercedes, um bandido chamado Rojas e um índio Yaqui que se fundia com as sombras, as ervas e o vento. Quis ser esse índio e é provável que ainda hoje eu ame Mercedes como jamais algum homem amou uma mulher.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

O Fio da Navalha, de Somerset Maugham. A Náusea, de Sartre. Tortilla Flat e A Leste do Paraíso, de John Steinbeck. Lord Jim, de Joseph Conrad. Terna é a Noite, de Fitzgerald. Os indecorosos livros proibidos do Vilhena. Alguns poemas de Fernando Pessoa ditos por João Villaret. Os Centuriões e Os Pretorianos, de Jean Lartéguy. O Canto IX de Os Lusíadas. Salambó, de Gustave Flaubert.

5. Um local público onde goste de ler

Gosto de ler nos jardins da Gulbenkian. Gostaria de poder ter lido nas calles que Jorge Luis Borges cantou no seu Fervor de Buenos Aires.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Quando era miúdo, em Luanda, na Vila Alice, lia sentado, horas seguidas, nos ramos da mangueira do meu quintal. Não é fantasia, é mesmo verdade. Agora, com três almofadas, na vasta planície que é a minha cama.

7. Uma biblioteca importante para si

A tão bonita biblioteca do mais belos dos liceus, o Salvador Correia, onde li O Crime do Padre Amaro, joelho contra joelho de uma colega de longas pernas. A Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda – vinha cá para fora, para o relvado sobre a Mutamba, e foi assim que li As Vinhas da Ira. Depois, a Biblioteca Nacional de Angola, dirigida pelo professor Carmo Vaz, no começo dos anos 70. Foi lá que ao ouvido me sussurraram o 25 de Abril que houvera na distante Lisboa.

8. As livrarias que costuma visitar

A minha primeira livraria fornecedora foi a livraria Goya, na Avenida dos Combatentes, em Luanda, só depois a Lello, na Baixa. Agora, em Lisboa, passo muitos fins de tarde na Bertrand Picoas-Plaza, mas a apresentar livros. Gostava da Pó dos Livros. Gosto da Livraria Francesa, devia ir lá mais vezes.

9. Uma editora de que goste particularmente

Da Guerra e Paz editores, está claro :) . Mas gosto da Dom Quixote, da Quetzal, da Relógio de Água, da Porto Editora, da Presença, da Tinta da China, da Leya, da Bertrand, da Gradiva, da Antígona, da Imprensa Nacional, da Paulinas, da Sistema Solar, da Planeta e da Penguin. Gosto da diferença entre os grandes e os pequenos editores. Gosto dos editores que chamam negócio ao negócio e gosto dos editores que julgam ser sacerdotes dominicanos em defesa dos happy few. E, olhem, tenho saudades da Assírio do Hermínio Monteiro. Podiam ser insustentáveis, mas eram uns tempos deliciosos, uma espécie de kir royal de fim de tarde.

10. Que livros gostaria de reler?

Estou sempre a reler o raio de um livro que o meu professor de Filosofia Antiga e História e Filosofia das Ciências, o José Gabriel Trindade dos Santos, me deu em Novembro de 1980. É um calhamaço verde, da Emecé Editores, e tem parte da Obra Completa (1923-1972) de um poeta cego rendido «a los espejos, laberintos y espadas» e também a «el outro y el olvido». O velho volume já se vai desfazendo, soltam-se páginas, apagam-se algumas letras, mesmo um inteiro verso. Na decadência dele, a minha decadência: morreremos nos braços um do outro.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Já nada guardo, nem tão pouco a velhice. Se é para o apocalipse, apocalipse now.

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Já dispenso muitas vezes os óculos de ver ao perto. Voltei a ler de olhos nus, sem intermediação, as piedosas pestanas a roçar a meiga página.

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Nada de promiscuidade, já só leio por amor.

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Claro, claro. Na Le Point, belíssima revista francesa de centro-direita. Num filosófico agregador australiano, o Arts & Letters Daily que me selecciona o que de melhor se pode ler diária ou semanalmente no TLS, Aeon, New Yorker, Beirut Daily Star, Arion, Jerusalem Post, Cabinet, Fortnightly Review, Laphams Quarterly, Philosophy & Literature, enfim uma snobeira desatada que já me aconteceu descambar em simplicidade e beleza.

15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

Se me permitem, cantar-lhes-ei uma canção:

Farewell and adieu to you, Spanish ladies
Farewell and adieu to you, ladies of Spain;
For we have received orders
For to sail to old England,
And we may ne'er see you fair ladies again.





Beijinhos a todas,

Céu

Comentários

  1. Céu, respondi com gosto ao desafio e vim aqui descobrir, com alegria, que não só fui tratado com extrema gentileza, como estou muito bem acompanhado. Parabéns pelo blogue.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Manuel, nós é que agradecemos. Estamos perfeitamente encantadas. Muito obrigada!

      Eliminar

Enviar um comentário

Conversem connosco: