Os leitores falam às Senhoras: José Afonso Furtado (investigador e ex-Director da Biblioteca de Arte Gulbenkian)




Queridas Senhoras,

hoje falamos com um dos maiores especialistas no sector do livro e da edição em Portugal. Durante 20 anos, entre 1992 e 2012, José Afonso Furtado foi Director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi Presidente do Instituto Português do Livro e da leitura (1987-91) e professor universitário (leccionou no Curso de Especialização de Técnicas Editoriais da Faculdade de Letras e no Curso de Pós-Graduação em Edição - Livros e Novos Suportes Digitais da Universidade Católica). Publica regularmente ensaios e monografias nas áreas do livro, leitura, bibliotecas (O papel e o pixel. Do impresso ao digital: continuidades e transformações, Lisboa: Ariadne, 2007; A Edição de Livros e a Gestão Estratégica, 2009, Booktailors, Uma Cultura da Informação para o Universo Digital, 2012, FFMS). Em 2012 foi considerado pela revista Time como uma das 140 personalidades a seguir no Twitter. Podemos acompanhá-lo nesta rede social bem como no Linkedin.

1. O que está a ler neste momento?

Um pequeno esclarecimento: “ler” significa aqui a leitura empenhada de obras no domínio da ficção ou ensaio, em suporte impresso ou digital. Posto o que, neste momento estou a ler a mais recente obra de Nicole Krauss, Forest Dark, publicado pela Bloomsbury nos finais de Agosto de 2017. Na área ensaística, L' età della frammentazione. Cultura del libro e scuola digitale, de Gino Roncaglia, Laterza, 2018.

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Na ficção, Berta Isla, de Javier Marias, Alfaguara, 2017 e Trieste, da autora croata Daša Drndić, obra inicialmente publicada em Zagrebe em 2007 com o título Sonnenschein e posteriormente traduzida para inglês por Ellen Elias-Bursać e publicado na MacLehose Press em 2012. No ensaio, L'appétit des géants: Pouvoir des algorithmes, ambitions des plateformes de Olivier Ertzscheid, C&F Editions, 2017. No que se refere ao futuro, excepto quando estou a escrever um ensaio ou monografia sobre um tema específico, não sou assim tão planeado. Muitas vezes as leituras actuais fazem surgir outras, não antecipáveis, mas que permitem aprofundar ou conhecer outra perspectiva sobre o mesmo assunto. De qualquer modo, com esta ressalva, tenho prevista a leitura de Pátria de Fernando Aramburu, editado pela Dom Quixote com tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Manhattan Beach de Jennifer Egan, Scribner, 2017; no ensaio, seguramente, Automating Inequality: How High-Tech Tools Profile, Police, and Punish the Poor,de Virginia Eubanks, St. Martin's Press, 2018.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

A minha infância esteve de tal modo ligada aos livros que me é muito difícil encontrar episódios especialmente relevantes. Eu explico: sofrendo de asma desde muito novo, habituei-me a socorrer-me dos livros para aplacar as noites pouco ou mal dormidas. Tendo o privilégio do acesso à nutrida biblioteca do meu avô, nela fui encontrando os obras que aliviavam os meus achaques. Com Emilio Salgari, Júlio Verne, Walter Scott ou Alexandre Dumas, a leitura e os livros começaram a tornar-se companhia indispensável e parte definitiva da minha vida.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Para além do lastro das leituras mais juvenis que acima referi, o momento decisivo para a minha relação com os livros terá sido a leitura de Vermelho e Negro (não em francês, que não dominava ainda) mas na edição portuguesa de 1943 da Editorial Inquérito na colecção Centauro. Com uma colorida capa, cujo autor ainda hoje desconheço, traduzido para português por José Marinho (em que Julien se transforma em Julião…), foi com ele que tomei consciência da multiplicidade do universo dos livros, de obras que mobilizam a nossa atenção inteira, que nos intranquilizam e, por vezes, nos transformam. Mais ainda, de que os livros são realidades materiais, cuja produção  implica várias decisões sucessivas, e que os textos, as histórias, as narrativas que nos marcaram estão muitas vezes intimamente ligados a um determinado exemplar. Este cria, com o passar do tempo uma certa patine, que não é só física (e que se pode manifestar na sua progressiva deterioração) mas também o depósito, a sedimentação de um conjunto de circunstâncias (o exemplar que ainda mantenho foi oferecido por meu pai à minha mãe…), memórias e sentimentos. Percebi, por fim, que a leitura nos pode deixar ao mesmo tempo possessos, exaltados e, ainda assim, bem aventurados.

5. Um local público onde goste de ler

Não tenho qualquer gosto por ler no exterior da minha casa ou local de trabalho (que aliás se podem confundir). A leitura supõe esforço físico, isolamento, silêncio e um conjunto de ferramentas que excluem à partida jardins, praias ou cafés. Uma biblioteca pública poderá ser excepção a este princípio.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Depende naturalmente do género de obra que estamos a ler; se implicam anotações, remissões ou sublinhados, ou a utilização de um computador para pesquisas rápidas, necessito de estar sentado na minha mesa de trabalho. Se não for esse o caso, um sofá ou a cama servem perfeitamente.

7. Uma biblioteca importante para si

Por razões óbvias, a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste de Gulbenkian, de que fui responsável durante 20 anos (1992-2012).

8. As livrarias que costuma visitar

Sou um adepto das livrarias de proximidade, livrarias de fundos ou especializadas. Como vivo em Campo de Ourique, a minha livraria é a Livraria Ler. Posso ir ainda, com menor regularidade, à Bertrand do Centro Amoreiras. Para um acervo de fundos, a defunta Pó dos Livros, a Ler Devagar e a Almedina Saldanha. Especializadas, a Sistema Solar e a STET - livros e fotografias. Uma palavra para a Livraria Arquivo, em Leiria.

9. Uma editora de que goste particularmente

A Steidl (Göttingen). Trabalhando sobretudo na área dos livros de arte e fotografia, cada título é alvo de uma atenção personalizada, desde o design à escolha do papel, à preparação das imagens para impressão (sempre sob a supervisão do próprio Gerhard Steidl) com um resultado final deslumbrante. Entre nós, sou um fiel apreciador (desde o seu início) da Assírio & Alvim, da Relógio d’Água, da Quetzal, da Dom Quixote ou da Cotovia. Mais recentemente, a Sistema Solar/Documenta.

10. Que livros gostaria de reler?

Não tenho propriamente livros para reler. Releio regularmente um conjunto de autores ou esta e aquela obra que me vêm acompanhando ao longo da vida: Marcel Proust, Robert Musil, Virginia Woolf, Antonio Tabucchi, Julien Graq, Joseph Brodsky, William Faulkner, Don DeLillo, Tolstoi, Juan Rulfo, Maria Velho da Costa, A Montanha Mágica, Finisterra, de Carlos de Oliveira. Este ano, por exemplo, penso voltar ao ciclo de Région de Juan Benet e, por razões inesperadas, um livro fortemente recomendável: Central Europa, de William Vollmann, recentemente publicada em Portugal pela 7 Nós.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Eu já estou na velhice, por meu mal. Assim, continuarei com os meus hábitos de sempre.

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Bom, os óculos não são para mim decorrentes da actividade leitora, são antes uma questão de sobrevivência (minha e dos outros). Para além deles, não prescindo de uma lapiseira, de um caderno de notas, de marcadores e de muitos post-its. Se a leitura for digital há variantes a ter em conta, designadamente os formatos ou standards dos readers, que permitem ou impedem determinadas acções, sendo que pessoalmente prefiro um iPad, com o respectivo Apple Pencil e uma aplicação de leitura com o máximo de valências, como o PDF Expert da Readdle, o pdf-notes, o iAnnotate ou o LiquidText. Se se tratar de uma leitura de trabalho, que possa implicar escrita regular, utilizo basicamente um computador. Chamo a atenção para o facto de estes acessórios não se excluírem entre si, usando mais do que um a maior parte das vezes.

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Em obras de ficção ou semelhantes, deixo passar algum tempo e volto a tentar como se fosse uma outra primeira vez. Se continuar a não resultar, assumo um desencontro definitivo entre mim e esse livro. De qualquer modo, há uma estratégia aconselhável: tentar compreender de antemão se ela corresponde ao meu perfil de leitor… Se se tratam de textos indispensáveis para qualquer trabalho que esteja a realizar, insisto e leio, nem que seja a duras penas.

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Naturalmente. As minhas fontes principais são revistas (em papel ou digitais) de que refiro apenas algumas: The Bookseller, Publishers Weekly, The Times Literary Supplement, The New York Review of Books, Bookforum, Le Magazine Littéraire, L'Indice dei Libri del Mese. Por outro lado, suplementos literários de jornais: ípsilon (Público), Expresso, Babelia (El Pais), Le Monde des Livres, Bibliobs, The Guardian, The New York Times Books Review, The Washington Post. Blogues, newsletters ou páginas no Facebook ou contas do Twitter mantidas por editores, livrarias, críticos ou autores.

15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade 

«I am not influenced by books. Instead, I am shaped by them. I am made of flesh and bone and blood. I am also made of books.»
Roxane Gay





Beijinhos a todas,

Céu

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