Queridas Senhoras,
a coisa de que eu mais preciso é de espaço. Grande parte da minha vida adulta esclarecida tem sido uma busca por mais e mais espaço. Antes disso, enchi-me até já não poder respirar. Não é que, no pós-esclarecimento, não tenha cometido erros. Porque será que as verdades mais límpidas são as mais difíceis de manter à tona? Mas, felizmente, mantenho-me rodeada de salva-vidas e acabo por recuperar a limpidez.
Imagino que seja isto a prática religiosa. A ida regular ao local de culto como nivelador. O meu nivelador, os meus salva-vidas, são as palavras. As dos outros iluminam pontos do meu cérebro onde a luz ainda não tinha chegado, ou já se tinha extinguido; as minhas arrumam-me o pensamento. Mais espaço.
Recentemente tomei uma decisão que me obrigou a avaliar a minha vida. Preciso de espaço mental para me dedicar à escrita e não o conseguiria se continuasse a querer fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Esta é uma das minhas principais características, vocês sabem-no bem, fazer muitas coisas ao mesmo tempo, tão depressa uma qualidade como um defeito. Num destes dias cruzei-me (na biblioteca onde costumo refugiar-me quando preciso daquele tipo de espaço tão raro, o silêncio) com o livro 'O Desafio das 100 Coisas', de Dave Bruno. Já me cruzara com o conceito online e achei que seria uma boa altura para recuperá-lo. Li-o numa penada. Ficaram-me apenas algumas frases que, de facto, acenderam algumas luzes nas zonas mais cinzentas da minha dita massa. Sobretudo, estas:
1. "Eu queria ser um mestre da marcenaria para ser capaz de atingir um nível de satisfação. Nem o talento para a marcenaria nem o sentimento de satisfação que eu pensava que esse talento me traria estavam à venda. Porém, havia ferramentas à venda. Então eu comprava ferramentas." Há muitos anos comprei um piano, que está agora à venda porque preciso do espaço, dá-me jeito o dinheiro e, aprendi-o com Dave Bruno, tenho que fazer as pazes com esta não realização. Já vai sendo altura disso.
2. "Apesar de não ser possível viajar no tempo e mudar o passado (comprar agora as coisas que julgamos que teriam resolvido os nossos problemas de então não muda em nada as nossas vidas imperfeitas), podemos viver o tipo de vida que fará com que tudo funcione melhor no futuro)." Apesar de eu gostar de pensar que vivo a olhar em frente, tenho que admitir que espreito demasiadas vezes para trás. Não no acto de comprar coisas, mas nos momentos de tomada de decisões. Olho para trás para me assegurar de que estou a fazer algo diferente daquilo que já foi (mal) feito. Mas a verdade é que tenho que deixar-me disso, pois há uma parte de mim que continua à espera de conseguir mudar o passado.
Ao Walden, de Thoreau, às mulheres frugais de Ana Teresa Pereira, ao modus vivendi de Henry Miller, ao despojamento heróico de Chris McCandless, à errância tremendamente sexy de Chris Stevens, às férias de verão da pequena Agnès, à sabedoria cristalina da tia Odete da Céu, junta-se agora um average family guy que decidiu ver-se livre da tralha. Os meus salva-vidas. Eu ando a tentar ver-me livre da minha tralha, é um work in progress, mas devo dizer-vos que enche-me de satisfação ver uma prateleira vazia cá em casa. Ou o equivalente em matéria cerebral. Respiro tão melhor quanto mais espaço conquisto.
Beijinhos grandes a todas
Querida Marta,
ResponderEliminarÉ por textos como este que a perca do teu piano vale a pena.
Arranja espaço mulher muito! As tuas teclas são outras.
E não é que foi vendido este sábado? :)
ResponderEliminar[...] Tem tudo a ver com questões que já tantas vezes falámos aqui: o que fazemos do nosso tempo (e espaço), como não perder o foco, não nos distrairmos do essencial, [...]
ResponderEliminar[...] Philip Barrow Quarenta anos Reler Respirar [...]
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