Respondendo ao teu repto, Senhora Céu

guernica


Minha querida Senhora,

do meu ponto de vista, eu vejo aqui três questões. Uma, que tem a ver com o egotismo do artista; outra, que se inscreve no pantanoso território das opiniões; e, por fim, a da natureza do negócio literário.

Os escritores são artistas como os outros e, consequentemente, fortes candidatos a egotistas. Haverá, como em tudo na vida, excepções a confirmar a regra, mas a regra é esta.

Tu tens um profundo respeito pelo trabalho dos outros, Céu, assim como demonstra tê-lo José Mário Silva. Desprovidos desta idolatria-de-si-mesmo, ambos sabem perfeitamente distinguir o vosso trabalho do dos outros; e (repara) sendo ambos fazedores de um tipo de trabalho que se debruça sobre o trabalho de outros, têm essa capacidade humanamente admirável de não perderem o pé: o vosso trabalho é sobre o trabalho dos outros, não é sobre os outros nem é, de todo, sobre vocês.

Daí que isto incomode. José Mário Silva demonstrou sentir-se incomodado com a possibilidade de todo este fogo de artifício distrair o público do essencial: está aí um novo livro de Luís Quintais. Ponto. Certamente que não concordará com a opinião de Luís Quintais acerca do seu texto, mas, sábio, não permite que uma opinião acerca do seu trabalho sobre o trabalho de outro, proferida pelo outro-ele-mesmo, atinja a sua esfera pessoal.

Já Luís Quintais não concorda com a opinião de José Mário Silva acerca da obra de Fernando Pessoa, ortónimo, nem com a forma que o crítico deu ao texto sobre o livro Depois da Música, e resolve que o melhor destino a dar a uma opinião que diverge das suas é o interior do corpo daquele que as profere, via rectal. Atingindo, assim, uma esfera bastante pessoal e, até, escatológica. Isto incomoda porque é medíocre; a mediocridade incomodar é sinal de elevação.

A mediocridade é o filho mais bem sucedido das redes sociais e dos comentários online. Isso é triste, não é exclusivamente português e é galopante. Ocorre-me uma citação de André Gide que tenho que ir procurar para transcrever correctamente. Cá está: 'Most often people seek in life occasions for persisting in their opinions rather than for educating themselves.' Mediocremente, esta persistência é, muitas vezes, consolidada com camadas de ignorância, desrespeito e rudeza. E o facebook é a plataforma perfeita para ir acumulando camadas.

Mas o pano de fundo de todo este enredo é o mundo editorial. Primeiro, ninguém nos garante que tudo isto não passe de uma técnica de auto-promoção por parte do poeta. Depois, há uma intrincada teia de influências que determina que escritores (ou, melhor, que editoras) têm lugar de destaque em que jornais, revistas, prateleiras de livrarias, etc. É uma selva. Há 'objectores de consciência', certamente que sim, e são autênticos heróis. Mas a ordem de trabalhos é cada-um-por-si-e-ou-estás-comigo-ou-estás-contra-mim. Parece que José Mário Silva não recebeu o memorando e, oh, quão bem isso diz dele!

E tu incomodares-te com tudo isto, minha querida Céu, oh, quão bem isto diz de ti!

Um grande beijinho

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