Na livraria City Lights, em São Francisco, em 2015
será que uma revisora de texto ainda tem tempo e paciência para ler de forma descontraída, para além das suas obrigações profissionais? Catarina Sacramento explica que sim e dá-nos conta da sua experiência que começou pelo jornalismo musical e cultural (Blitz, Time Out Lisboa, Lifecooler, Observador, Preguiça Magazine), passou pela função de assistente editorial e consolidou-se na actividade de revisora externa de várias editoras livreiras. Desde 2012 pratica afincadamente a caça ao erro e o tiro à gralha.
1. O que estás a ler neste momento?
A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi. Ando numa fase de trabalho intenso, que me deixa pouco tempo para leituras voluntárias, e como era um livro muito pequenino resolvi pegar nele. Num dos últimos episódios do Curso de Cultura Geral, que sigo atentamente na TV, uma das convidadas incluiu-o entre as suas sugestões e pensei: não é tarde nem é cedo. Queria ver se ainda este ano me lançava a Anna Karenina, que tem sido um projecto continuamente adiado. Enquanto ganho fôlego, este serve de aperitivo.
2. O que leste antes e o que vais ler a seguir?
Acabei de ler outro livro mínimo em tamanho e máximo em importância: Querida Ijawele – Como educar para o feminismo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Antes desse tinha lido o Manual para Mulheres de Limpeza, de Lucia Berlin, que me deixou rendida. É uma reunião de contos, mas com pontos de contacto entre eles. A escrita dela é vibrante, electriza os sentidos. Os ambientes, o ritmo... tem tanta(s) vida(s) dentro. Há lá histórias que dificilmente vou esquecer.
O que vou ler a seguir... ainda estou indecisa. Gosto de intercalar clássicos e contemporâneos, estilos diferentes de escrita. Acho que nunca li dois livros seguidos do mesmo autor, mesmo gostando muito dele/a, porque preciso do efeito de contraste. E às vezes boicoto os meus próprios planos: ia com ideia de ler um certo livro, mas percorro as estantes e acabo por pegar noutro diferente. Tenho taaaantos em lista de espera... É bom ainda ter todos estes livros pela frente que me podem surpreender, mas o momento da decisão por vezes é angustiante. A seguir queria ler um destes: Levante-se o Réu (Rui Cardoso Martins), Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato (Ana Margarida de Carvalho), Liberdade (Jonathan Franzen), A Sangue-Frio (Truman Capote) ou A Sibila (Agustina Bessa-Luís)... a ver vamos.
3. Conta-nos uma memória de infância relacionada com livros.
Sou a mais nova de quatro irmãos. Quando eu era pequena, as minhas irmãs tinham uma colecção de histórias infantis 2 em 1: cada uma composta por um disco de vinil que lá dentro trazia um livrinho com a história. Eu ainda não devia saber ler... do que me lembro é de elas porem o disco a tocar para ouvirmos. Nunca mais me esqueci de uma delas: ‘João e Maria’, porque a voz da velha que prende o Joãozinho no galinheiro era assustadora! Era o Hansel e Gretel, dos irmãos Grimm, em versão portuguesa com sotaque brasileiro. Eu tinha uma relação de amor-ódio com aquilo: atraía-me e queria muito ouvir, mas ficava cheia de medo. Sempre que falo nisto volto a ouvir a voz da velha na cabeça e ainda sei algumas falas de cor.
4. Que livros marcaram a tua adolescência?
O Processo, de Kafka, impressionou-me bastante. Abanou-me, fez-me pensar. Mas houve um livro que me marcou por ter sido uma experiência única, que nunca mais repeti: li-o a meias com a minha irmã Paula, cada uma lendo para si, mas as duas ao mesmo tempo. A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. Foi numas férias em Porto Covo, tinha eu 14 anos e ela 21. Todos os dias, depois de almoço, deitávamo-nos na cama de barriga para baixo, com o livro entre as duas, e passávamos uma hora ou duas a ler. No dia seguinte repetia-se o ritual. Isto só funcionou porque temos ritmos parecidos (cada uma esperava, no máximo, 2 ou 3 segundos pela outra para virar a página). Foi uma experiência feliz de leitura sincronizada. Acabámos o livro nessa semana de férias.
Mais tarde, aos 18 ou 19 anos, tive nova revelação ao descobrir Boris Vian (com A Espuma dos Dias): não sabia que se podia escrever assim, com tal liberdade e humor delirante.
5. Um local público onde gostes de ler
Os jardins da Gulbenkian.
6. O teu recanto preferido de leitura (em casa)
Tenho dois: a chaise longue vermelha com apoio para os pés, junto à janela da sala, para ler durante a manhã (quando bate lá o sol) ou deitada na cama do escritório, com a luz da tarde. Nessas duas divisões tenho a maioria dos meus livros, por isso mesmo a ler sozinha estou sempre bem acompanhada.
7. Uma biblioteca importante para ti
A Biblioteca de Arte da Gulbenkian. Aqueles cadeirões em couro e a vista para o jardim valorizam qualquer leitura.
8. As livrarias que costumas visitar
Em Leiria (cidade onde cresci e à qual regressei recentemente, depois de 20 anos em Lisboa), a livraria onde me sinto em casa é a Arquivo. Regra geral, tento dar preferência às livrarias independentes. Em Lisboa, gosto muito da Leituria (na Estefânia), por exemplo. Adoro o espaço da Ler Devagar (em Alcântara), embora raramente lá compre livros. E também não resisto ao charme da Bertrand do Chiado. Ando curiosa para conhecer a Baobá, em Campo de Ourique, porque tenho um fraquinho-bem-forte por ilustração. Em viagem, gosto sempre de descobrir uma ou duas livrarias das cidades que visito.
9. Uma editora de que gostes particularmente
A Planeta Tangerina, que tem livros maravilhosos, para miúdos e não só. Apetece comprá-los todos!
10. Que livros gostarias de reler?
Alguns livros de Eça de Queirós que li ainda na adolescência (O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, etc.). Creio que agora estaria mais atenta e daria mais valor à sua riqueza literária: a musicalidade das palavras, a ironia fina... Depois há O Principezinho, a que volto de tempos a tempos. E alguma poesia: Fernando Pessoa, Manuel António Pina, Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny ou Adília Lopes são autores que visito com regularidade, quando sinto saudades deles. Um pouco como acontece com os amigos.
11. Que livros estás a guardar para ler na velhice?
O Guerra e Paz (em 4 volumes) foi a prenda que pedi à minha mãe pelos meus 30 anos. Este ano fiz 40 e ainda não o li. Por este andar, pode bem vir a ser esse...
Queria muito colmatar várias lacunas de clássicos, portugueses e estrangeiros, mas boa parte deles são calhamaços consideráveis. Resultado: os anos vão passando e muitos continuam por ler. Daqui a 30 anos podemos voltar a falar?
12. Acessórios de leitura que não dispensas
Uso sempre marcador (mesmo que seja um bilhete de teatro ou de um concerto), porque sou incapaz de dobrar páginas. E, quando leio fora de casa, normalmente levo uma bolsa impermeável com o livro que ando a ler. Talvez tudo isto sejam formas de expressar o meu respeito pelo objecto livro: manusear sim, estragar não. Confesso que ultimamente juntei mais um objecto a esta lista: um lápis. Raramente sublinho os livros, mas se há coisa que me encanita quando estou a ler, é encontrar gralhas. Perturbam-me a leitura, criam ruído do qual me custa abstrair. Sempre fui assim, mas estou cada vez pior. A única forma de minimizar os estragos é corrigir os erros, a lápis, na margem. A caneta nem pensar! Admito que sou uma coca-bichinhos: só assim se percebe a minha dupla condição de leitora por gosto e por profissão. Já passo os dias a fazer revisão de livros e no tempo livre ainda quero ler outros livros, mais livros, muitos livros! Os que vou acumulando nas estantes, mais os que não resisto a comprar. Quando tenho de rever um livro que já queria ler, então, é o melhor de dois mundos.
13. Se um livro não te prende, pões de lado ou insistes?
Ponho-o de lado. E nem sempre é por não o achar bom, simplesmente pode não ser o tipo de leitura para a qual eu esteja predisposta naquele momento. Mas não tem de ser um abandono definitivo. Já aconteceu voltar a ele mais tarde e depois adorar o livro – foi o caso de Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, do Afonso Cruz. Levei-o para umas férias, mas andava muito cansada, não estava a conseguir concentrar-me e resolvi parar. Dois anos depois, devorei-o com imenso prazer. O livro, como se vê, não tinha culpa nenhuma. Foi aquela situação clássica do ‘não és tu, sou eu’.
14. Costumas ler sobre livros? Quais são as tuas fontes?
Vou-me mantendo razoavelmente informada sobre o que se vai editando, até porque é a minha área de trabalho. Gosto de ler entrevistas com alguns escritores, mas detesto que me contem a história dos livros. Prefiro ser surpreendida. Por isso, em alguns artigos, se começam a entrar mais a fundo no enredo deste ou daquele livro, salto umas linhas no texto.
15. Uma citação inesquecível
Gosto muito de uma frase das Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira: «É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir.» Essa capacidade de nos espantarmos, a curiosidade pelo mundo, é algo que nos deve acompanhar sempre, em qualquer idade. Na leitura e na vida.
(Nestas respostas da Catarina encontro uma série de pontos em comum com as minhas próprias leituras e referências. Mas (ainda) não leio de lápis em riste, pronta a caçar a gralha, isso não.)
Beijinhos a todas,
Céu
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